terça-feira, 30 de junho de 2009

A primeira apresentação (parte 3)

A "Passeata dos 100 mil", maior manifestação realizada até então contra a ditadura militar, aconteceu a partir de um ato político promovido por estudantes, artistas e intelectuais na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Era o dia 26 de junho de 1968. Na foto histórica, vemos um dos participantes da passeata, o cantor e compositor Milton Nascimento, aos 25 anos de idade. No ano anterior, sua canção "Travessia", feita em parceria com Fernando Brant, havia conquistado o segundo lugar no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record.

Antes de continuar essa narrativa, quero situá-la melhor no contexto histórico e cultural. Estávamos bem no início dos anos de 1970. A situação política do país era muito complicada. Com a edição do AI-5, que aconteceu no finalzinho de 1968, e a posse do general Médici na presidência da república, o Brasil vivia um período de pesada repressão. A liberdade individual era limitada e balizada pelo conceito tão rígido quanto subjetivo da “Segurança Nacional”, o que vale dizer que tudo servia como motivo para abordagens, detenções, prisões e até para torturas e “desaparecimentos”. A censura comia solta, e também seguia os parâmetros mais variados possíveis, como, por exemplo, o humor dos agentes censores.

Chico Buarque e Jair Rodrigues comemoram o resultado do 2º Festival da Record, em 1966, que dividiu o primeiro lugar entre as músicas "A Banda" e "Disparada". Desde a segunda metade da década de 1960, o país via surgir talentos a granel por conta dos lendários festivais. A música brasileira provavelmente jamais viveu um período tão intenso e turbulento como aquele.

Para tornar a questão mais didática, especialmente para quem não viveu os anos da ditadura, podemos dizer que havia três correntes muito distintas na nossa música de então: uma primeira de compositores e cantores que usavam sua arte e sua voz como instrumento de resistência, questionando e até mesmo confrontando o regime militar; outra, exatamente oposta à primeira, que assumia muitas vezes um papel próximo ao de porta-voz do governo, gravando canções com mensagens ufanistas; e uma terceira corrente que parecia indiferente ao clima de terror instalado no país.



O conjunto "Os Incríveis" emplacou vários sucessos na época, entre eles a marcha-rancho "Eu te amo, meu Brasil", que foi muito utilizada pelo governo militar em sua propaganda anti-esquerda. O talento de seus músicos, como Netinho e Manito, sobreviveu às questões políticas, e o grupo é hoje reconhecido como um dos mais importantes da história do rock brasileiro.

Embora eu não tivesse idade suficiente para refletir sobre o posicionamento político dos adultos com quem eu convivia, o fato é que à minha volta imperava o que posso chamar hoje de um certo "distanciamento". Assim, em nossa casa, naquela época, não entrou nenhum disco de artista que produzisse a chamada “música de protesto”. Já nas escolas estaduais que freqüentei durante o período do governo militar, especialmente nos primeiros anos de estudo, imperava o ufanismo oficial. Se em casa eu aprendia as letras de sucessos aparentemente ingênuos, nas salas de aula eu decorava canções repletas de mensagens que glorificavam o "milagre econômico", a paz, a ordem e o progresso do país. Em razão disso, quando chegou a hora de ir lá na frente cantar para todos os meus colegas de classe, certamente eu não iria escolher nada do repertório do já famoso carioca Chico Buarque de Hollanda, menos ainda do paraibano de voz e semblante graves Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o Geraldo Vandré. Dito aqui, feito lá.

(continua num próximo post)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A primeira apresentação (parte 2)

O francês Jordy foi o cantor mais jovem a ter um single em primeiro lugar de vendas. Alcançou esse feito em 1982, aos quatro anos de idade, com a música "Dur dur d'être bébé", que vendeu dois milhões de cópias na França e foi sucesso também na Europa, Brasil e Japão.

A experiência que eu mencionei na primeira parte desta história não vinha exatamente das cantorias em família no carro. Vinha de uma outra cena que acontecia com certa frequência. Antes, e para encerrar de vez essa coisa de “auto-confete”, além da facilidade que eu tinha para decorar letras de músicas, eu também sabia os nomes dos compositores das músicas que conhecia. Mais que isso, se a música estivesse incluída num LP que eu já tivesse ouvido, eu saberia dizer o lado e a faixa que ela estava no disco. Ah, também conhecia o nome de todos os artistas das novelas da época. Tanto que eu era sempre consultado pelos adultos que freqüentavam nossa casa, quando o papo era sobre aquele ator ou atriz que trabalhava-naquela-novela-que-passava-naquele-canal-naquele-horário. Ou seja, eu era praticamente um almanaque ambulante de quase tudo que rolava na TV, no rádio e na vitrola.

Nos anos 1960, Blota Jr. (na foto, à direita) e sua mulher, Sonia Ribeiro (na foto, a mulher), comandavam o programa “Esta Noite se Improvisa”, na TV Record. O apresentador dizia uma palavra e o concorrente que apertasse primeiro o botão à sua frente cantava uma música que contivesse a tal palavra. Caetano Veloso era imbatível, seguido de perto por Chico Buarque, que quando não se lembrava de nenhuma música compunha uma na hora, inventando até o nome do compositor.

Corta. Estamos agora na varanda da casa em que minha família morava. Manhã de domingo ou sábado, talvez de um feriado qualquer, manhã de um dia desses em que não há trabalho e por isso estes amigos dos meus pais vieram para almoçar. Antes, um aperitivo para os homens, que conversam animadamente ao redor da cerveja, e bate-bola no quintal entre os meninos. As mulheres na cozinha, que naquele tempo e naquela periferia de São Paulo não havia lugar para certas modernidades. De repente, ouço meu pai me chamando. Já imagino para o que é e vou ligeiro. “Filho, canta a terceira música do lado A do disco do Moacyr”. O braço da minha vitrola imaginária localiza a terceira faixa do novo LP do Moacyr Franco e desce suavemente. Começo a cantar. Vou até o fim sem errar uma frase, uma palavra. Termino, todos batem palmas e elogiam. Meu pai tem no rosto uma indisfarçável expressão de orgulho. Sorrio meio encabulado, ouço um novo pedido: “Agora, canta a primeira do lado B do disco que tem o Roberto dirigindo um helicóptero”. E lá vou eu: “Quando você se separou de mim...”.


Levanto a mão o mais tímido que posso, mas a professora percebe e pergunta sorrindo: o que você sabe fazer? Respondo baixinho: sei cantar. E ela: sabe cantar? Você é o? Marcelo? Então, Marcelo, depois que... como é mesmo seu nome, você mocinha aí do poema... Fernanda? Então, depois do Agnaldo... Agnaldo, né?...que vai fazer embaixadinha com a tampinha da garrafa, vem a Fernanda que vai recitar o poema. Aí, o Marcelo pode vir e cantar, vamos fazer assim?
A sorte estava lançada. Minha chance de me tornar um Jordy quase 20 anos antes do verdadeiro Jordy nascer tinha finalmente chegado. Pensando bem, quando ela viu minha mão levantada eu devia ter pedido pra ir no banheiro. Agora não dá mais, vou ter que cantar lá na frente de todo mundo. Mas que música? Tem que ser uma música de um cantor, Martinha e Wanderlea não. Nossa, o Agnaldo já terminou! Só isso de embaixadinha?? Então vou cantar só um pedacinho da música. Já sei, vou cantar uma bem pequena, canto rápido e pronto, ninguém vai reparar. Será que não peço pra ir no banheiro antes?
(continua num próximo post)

Um parêntese

750 milhões de discos vendidos na carreira! Alguma dúvida de que o cara era bom?

Como praticamente todos da minha geração, fui deveras influenciado pela cultura pop. A partir do fenômeno da beatlemania, a indústria da cultura do entretenimento de alcance global baixou pesado sobre nossas cabeças. Criado o contexto de mercado, faltava criar o produto. Eis que no início dos anos 1970 aparece o menino Michael Jackson, um talento em estado puro, o artista que viria se tornar a principal referência da florescente cultura de massa. Desde seu surgimento, no Jackson Five, passando pelo genial álbum “Triller” – o disco mais vendido da história – até pouco depois, com o lançamento do disco “Bad”, não teve pra ninguém. Noves fora as esquisitices dos últimos anos, devidamente exploradas pela mídia, a música pop de qualidade, a música negra, a música que faz até estátua sair dançando perdeu seu maior símbolo, seu maior nome. Podia, ao menos, ter esperado um pouco mais pra fazer os shows em Londres, hein, cara?

terça-feira, 23 de junho de 2009

A primeira apresentação (parte 1)

Como se diz, a primeira vez a gente nunca esquece. Menos ainda o primeiro mico.

Não chegou a ser propriamente um mico. Pelo que me lembro, a coisa correu até que bastante bem. Eu tinha de 6 para 7 anos de idade, estava cursando o início da segunda série do primário, chamado hoje de “ensino fundamental”. A Dona Marta, professora da minha classe, faltou naquele dia. Como era costume, a escola chamou uma professora substituta que já nos esperava no pátio, onde os alunos eram perfilados para cantar o Hino Nacional.

Em 1970, o Brasil vivia o período de maior recrudescimento do regime militar, mas não sei dizer se cantar o Hino Nacional antes das aulas era obrigatório em todas as escolas públicas. Naquela em que eu estudava, na então longínqua Zona Norte de São Paulo, assim era diariamente.

Como é mais do que compreensível, a professora substituta de um dia não aplicava o programa didático, já que não tinha em mãos a agenda da titular, não sabia a sequência das aulas. Ela deveria apenas manter os alunos ocupados e em ordem até que soasse no corredor o estrondoso sinal. E foi para nos manter em ordem, mas também atentos, que a jovem e simpática professora decidiu propor uma atividade inusitada para a classe toda: quem soubesse fazer algo interessante que quisesse (e pudesse, claro) mostrar aos demais colegas, que se inscrevesse para ir lá na frente, junto à lousa, dar o seu recado. Valia imitação, dança, desenho, plantar bananeira, fazer mágica, o que fosse. Mas havia mais. Após as apresentações, a classe toda votaria na que tinha gostado mais, e o aluno escolhido se reapresentaria no final da aula.


Protagonista de uma série americana que fez grande sucesso na TV entre 1971 e 1974, a "Família Do-Ré-Mi" cruzava os EUA num ônibus-trailer fazendo shows, se divertindo e ganhando muito dinheiro. Ou seja, nenhuma semelhança com a minha.

Apesar de ser um guri muito tímido, eu tinha uma certa “experiência” no que me propus fazer para participar da brincadeira. Desde muito cedo, demonstrei ter grande facilidade para aprender letras de música. Meu pai, como adorava cantar, incentivava isso em mim. Aliás, na família toda. Esqueça iPod, mp3, CD player, esqueça até o finado toca-fitas. Os automóveis da época mal tinham rádio AM. Por isso, quando viajávamos de carro, íamos cantando quase que por todo o percurso, desde o portão de casa até a chegada ao destino. Era só um de nós puxar a primeira frase para os outros emendarem o sucesso. Por serem mais novas que eu e meu irmão, minhas duas irmãs quase sempre não conseguiam acompanhar e, na maior parte do tempo, acabavam dormindo sob o fogo cruzado de músicas do Roberto Carlos, Moacyr Franco, Vanusa, Paulo José, etc. Pensando agora, devia ser por isso que elas sempre vomitavam nas viagens.

(continua num próximo post)


sexta-feira, 19 de junho de 2009

De "Uma brasa, mora" a Metais em Brasa



Em 1965 estreia o programa Jovem Guarda na TV Record

A música sempre esteve presente com destaque na minha infância. Meus pais não tocavam instrumento algum, mas ouviam muita música, e música popular no exato sentido do termo. Minha mãe era fã do pessoal da Jovem Guarda. Ainda solteira, chegou a freqüentar auditórios de programas de TV onde esses cantores se apresentavam. Aliás, a TV da década de 60 era riquíssima em programas musicais de auditório. Discos da Martinha, Wanderléa, Demétrius, Renato e seus Blue Caps e, claro, do Roberto Carlos, entre outros, não faltavam na nossa vitrola.



Uma legítima vitrola Telefunken. Era uma assim que havia em casa.

O prato girava em 33, 45 ou 78 RPM, coisa essencial numa época em que era comum ouvir música de "bolachas" lançadas em décadas anteriores

A vitrola de casa era um caso a parte. Tínhamos uma Telefunken enorme de madeira, que dividia com o televisor da mesma extinta marca alemã as honras de principal móvel da sala. Sim, a vitrola tinha aquele mecanismo que permitia empilhar 2, 3, 4 LPs uns sobre os outros. Assim que a agulha chegava ao final do disco, o braço do aparelho voltava para a direita e dava um misterioso comando que fazia cair o LP que estava em cima. Esse processo, obviamente, enchia os LPs dos chiados e riscos tão característicos nos discos de vinil.


Um dos primeiros LPs que ouvi e ouvi muito. Do maestro francês Franck Pourcel, que ao longo da carreira lançou 120 álbus e é considerado por muitos o criador da chamada "música orquestrada". Morreu em 2oo2, aos 89 anos

Chiados e riscos, aliás, eram bem mais perceptíveis quando na vitrola giravam os LPs preferidos por meu pai. Dono de um vozeirão ao estilo de um Nelson Gonçalves (aliás, por mais heresia que isso possa soar, acho a voz do meu pai melhor que a do Nelson), ele sempre gostou muito de músicas orquestradas, que como o nome indica, nada mais são do que temas populares executados por naipes de orquestra. Acho que isso se deve ao fato dele gostar muito de cantar. A música orquestrada, então, funcionava na época como um playback para ele soltar a voz, numa espécie de embrião do karaokê. Assim, discos de Lafayette, tecladista – ou melhor, “organista” – responsável por boa parte da sonoridade da Jovem Guarda, de Franck Pourcel, do trompetista americano Henry Jerome e seus "Metais em Brasa" e de Paul Mauriat se revezavam no prato giratório da Telefunken com seus temas românticos quase sempre extraídos de trilhas de filmes idem, além de versões melodiosas de sucessos internacionais e algumas faixas próprias. Ah, o infalível Ray Conniff também comparecia com seus arranjos já muito característicos. Apesar de eu ter à época apenas entre 4 e 5 anos de idade, lembro bem que gostava muito de ouvir o som que saía dos discos do Franck Pourcel.

Demorou um bocado pra que eu começasse a achar essa união melosa de piano e cordas uma tremenda xaropada. Mas o gosto pela melodia ficou enraizado em mim de um jeito que por muito tempo praticamente não dei ouvidos às coisas que soassem preferencialmente percussivas, rítmicas, viscerais na música.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Pelo sabor do gesto

LP gravado em 1966, que girava o tempo todo na vitrola de casa. Sem saber, eu começava a ser apresentado à música popular pelos ouvidos da minha mãe


Criei este espaço para falar sobre minha relação com a música. E por que? Porque tenho um projeto real de gravar um CD com músicas minhas até 2011. Por “músicas minhas” entenda-se o universo da chamada MPB. Sei que o prazo parece longo, mas considerando que não sou profissional da música, que iniciei praticamente agora o trabalho de pré-produção do material e, principalmente, que ainda estou longe de ter a verba necessária para viabilizar uma boa produção, trata-se de um prazo bem razoável.

Mas antes disso quero ter uma página no MySpace, o que deve acontecer ainda este ano. Para quem não conhece, trata-se de um lugar na web onde artistas da música divulgam seu trabalho gratuitamente. E tem gente muito boa por lá, profissionais de primeira linha e amadores com propostas muito interessantes. Estou iniciando o registro prévio de ao menos 5 canções para o MySpace, para assim começar a divulgar minhas composições.

Por meio de revelações e histórias, algumas já perdidas no tempo, quem passar por este blog vai ver que não sou um sujeito que saiu de um coma de 40 anos e, do nada, cismou de fazer música. As postagens vão mostrar que o que quero é resgatar a mim mesmo. Resgatar e investir (energia, tempo, trabalho e fé) em uma parte muito importante do que sou e que corria o risco de ficar perdida na gaveta de uma vida. Aliás, a gente vive deixando muita coisa pra depois, até que o depois vira passado. É contra isso que pretendo lutar.

Também irei, na medida do possível, falar algo sobre o processo de criação e de produção das músicas que entrarão no myspace e no CD. E já vou confessando que sei muito bem que o tão revolucionário Compact Disc vem perdendo rapidamente espaço para outras formas de consumo de música. Mesmo assim, acredito que ele ainda é importante, seja pela coisa da materialização do trabalho, seja “pelo sabor do gesto”, que é como a Zélia Duncan chamou seu recentíssimo CD.

Então, seja bem-vindo, seja bem-vinda a este projeto, a este sonho que começo agora a compartilhar com você. Com o maior carinho e verdade.