terça-feira, 29 de setembro de 2009

O "hino do PT" - parte 1


Projeto de Oscar Niemeyer, o Edifício Copan (à direita na foto) era já naquele ano de 1980 uma espécie de síntese de uma São Paulo cada vez mais vertical e desvairada. Em primeiro plano está o prédio do Bradesco, onde trabalhei; à esquerda, em tom bege, o altíssimo Edifício Itália. O cenário era perfeito para um ex-adolescente ainda retraído, mas ávido por novas aventuras, que não tardaram. Por aquela época, os protestos contra o regime militar se tornaram mais explícitos na imprensa, e grupos contrários à iminente abertura política passaram a patrocinar atentatos a bomba em bancas de jornais. Num daqueles dias, eu caminhava pela Galeria Copan quando ouvi um estrondo muito alto. Corri para a rua, certo de que tinham explodido a banca que havia na frente do prédio. Não. Ao chegar lá, me deparei no asfalto com os estilhaços de um corpo que tinha acabado de despencar do 13º andar. 

1980. Eu já com 16 anos de idade começava a querer ampliar meus horizontes. A primeira coisa era trabalhar em uma empresa maior, se possível no centro da cidade. Foi o que fiz. Saí do jornal e entrei no departamento de seguros do Bradesco, no sétimo andar do edifício-sede do banco, bem ao lado do famoso Copan e da esquina que, dois anos antes, tinha sido imortalizada por Caetano Veloso. Fiquei quase um ano nesse emprego, convivendo diariamente com jovens da mesma idade e quase os mesmos sonhos que eu. A rotina era maçante, resumia-se a atualizar manualmente fichas e mais fichas de segurados. As gavetas dos arquivos eram tão abarrotadas que vivíamos ferindo feio os dedos. Eu detestava aquele trabalho burocrático e burro, mas adorava caminhar pelo centro velho de São Paulo na hora do almoço. Percorria a Galeria Copan, a Praça da República, as calçadas da avenida São Luiz, os jardins da Biblioteca Mário de Andrade, a histórica Galeria Metrópole. Nessa época, comecei a ficar com uma pequena parte do meu salário. Assim, no dia em que o pagamento saía eu podia acompanhar meus amigos do trabalho em um pequeno luxo que repetíamos todo mês: ao invés de almoçarmos no bandejão do Bradesco, de comer aquele grude insosso que nos dava dor de estômago, íamos todos à lanchonete Jack in the Box ali perto. Curtíamos juntos um momento que parecia compensar a proibição de conversas e risos durante o expediente.



Eu estudava no Colégio Gonçalves Dias, um pouco mais distante de casa do que era a escola David Eugênio. Era colega de sala do Joel. Filho de uma feirante, Joel morava num bairro vizinho ao meu, numa casa que vivia cheia de gente. Um pouco mais velho e de personalidade bem mais expansiva, o leonino Joel sempre foi reconhecido como uma pessoa de grande coração. Aliás, ele e a Maria, que também era da nossa turma no colégio, são meus amigos até hoje, os mais antigos que tenho. Joel também não tocava nenhum instrumento harmônico, mas não tinha vergonha de cantar e batucar em qualquer coisa que estivesse na frente. Por ter trabalhado na feira com a mãe, tinha a voz rouca de tanto gritar preços e produtos, mas era afinado e dono de um timbre interessante. A Maria, além de bonita e inteligente, sambava como ninguém. Era por isso desejada por vários rapazes do colégio, inclusive por mim, que o fazia em segredo. Mais tarde compus um samba pra ela, uma das raras músicas que fiz antes dos 20 anos de idade que sobreviveram para uma possível futura gravação.



Em 1980, fui presenteado com este LP da Simone por uma amiga de então que nunca mais vi. Fazíamos parte de um grupo de jovens que se reunia todos os sábado para conversar, ouvir discos de MPB e, claro, também para namorar. Antes de se tornar cantora, Simone foi professora de Educação Física e integrou a seleção brasileira feminina de basquete. Ela chegou a dar aulas no colégio em que estudei, na Zona Norte de São Paulo. Eu e meus colegas escalávamos o muro da quadra para assistir às aulas daquela bela professora.

Por meio de um amigo em comum, conhecemos dois rapazes que tocavam violão e tinham um grupo de MPB, chamado “Sangue Novo”. O Orlando, conhecido como Landinho, era primo do Alexandre, conhecido como Alexandre mesmo. Eles não só tocavam todo o repertório dos mineiros do "Clube da Esquina" como compunham, e bem. Eu ficava maluco com aquilo. Depois de alguns encontros regados a cerveja e muita música, fomos assisti-los na final de um festival de colégio. Naqueles anos, era comum haver desses festivais nos principais colégios de São Paulo. Alguns eram muito bons, e a maioria dava prêmios em dinheiro. O “Sangue Novo” tinha se classificado para a finalíssima com a música “Hino aos Trabalhadores”, uma mistura de tango com marcha de carnaval que empolgava o público com sua letra irônica de crítica social e política. Era uma parceria do Landinho com o Alexandre.



Desde o fim dos antológicos festivais de MPB da TV Record, não foram poucas as tentativas de reviver a antiga fórmula que unia a descoberta de grandes talentos com o mais puro showbusiness. Em 1979, a TV Tupi, então prestes a ser extinta, lançou um desses festivais. Entre as revelações que participaram, como o vencedor Fagner, o segundo colocado Walter Franco e o terceiro Oswaldo Montenegro, estavam os irmãos gaúchos Kleyton e Kledir, que receberam menção honrosa pela divertida "Maria Fumaça". Durante toda a década seguinte, a dupla frequentaria as paradas de sucesso do Brasil com seu som pop repleto de citações e gírias tipicamente gaúchas.

Estávamos eu, o Joel, a Maria e a bonita irmã do Landinho, minha futura "namorada-relâmpago" Olívia, na plateia daquela final. Foi ótimo ver nossos amigos levantarem a galera com o refrão “Nós somos trabalhadores e cada dia trabalhamos sempre mais / as crianças passam fome, passam sede / o jeito é fechar a porta e abrir o gás”. Todo mundo cantava junto. A música ficou em segundo lugar, perdendo para um bom xote que também fazia crítica política, coisa quase inevitável naqueles tempos. Fomos comemorar, embora o Landinho se mostrasse chateado. Eu não sabia, mas era a segunda vez que aquela música ficava em segundo lugar num festival. Naquela noite, fui para casa disposto a mudar aquilo. Logo no dia seguinte, procurei o Landinho e o Alexandre para mostrar novas três estrofes que eu tinha escrito para a música. Eles aprovaram e me incluíram na parceria, mas não queriam mais saber daquela canção que parecia destinada a ser vice-campeã. Insisti e, semanas depois, estávamos classificados para a final de outro festival, com uma versão ampliada e ainda mais irônica do “Hino aos Trabalhadores”. Eu, o Joel e meu irmão Dario tínhamos ingressado no “Sangue Novo”. Como não sabíamos tocar nada, assumimos o vocal. Subimos no palco vestidos com macacão de frentista e segurando cada qual uma marmita. Na plateia, além dos amigos habituais, estavam também as famílias de todos os integrantes do grupo. Ganhamos o festival. Enquanto comemorávamos o prêmio, um sujeito nos puxou para o lado e fez um convite. Estava surgindo ali o “Hino do PT”, mas isso eu conto na sequência.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Intervalo



O Silêncio das estrelas
Lenine / Dudu Falcão

Solidão
o silêncio das estrelas
a ilusão
eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos
como um deus e amanheço mortal

E assim
repetindo os mesmos erros
dói em mim
ver que toda essa procura não tem fim
e o que é que eu procuro afinal?

Um sinal
uma porta pro infinito
o irreal
o que não pode ser dito, afinal
ser um homem em busca de mais, de mais

Afinal
como estrelas que brilham em paz

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O autógrafo do Chico - último capítulo

Lá atrás do tempo, autógrafo era todo tipo de texto escrito de próprio punho pelo autor. O conceito foi sendo simplificado até chegar ao que se tornou: tão somente a assinatura de um artista, de uma pessoa famosa, ou mais atualmente ainda, de uma celebridade. Simboliza um momento único na vida do fã, pois adquire status de documento que comprova que ele teve um contato pessoal com seu ídolo.

Eu tinha chegado até ali, juntei trocado após trocado semanas a fio, até conseguir comprar o disco que tanto queria. Tinha também um álibi inconteste para aparecer com aquele LP em casa. Ou seja, tudo parecia perfeito, e talvez por isso mesmo eu tenha começado a sentir falta de algum ingrediente mais retumbante na história. Aquilo era um acontecimento muito signitficativo para mim, eu não podia simplesmente chegar em casa e dizer: “olhem, ganhei mais um disco da rádio”. Isso ia passar batido, ninguém na minha família dava ao Chico Buarque metade da importância que eu dava. Eu vibrava com aquelas letras, com aquelas metáforas, com as rimas bem construídas, as melodias inspiradas, as críticas políticas quase sempre veladas, tudo de alto nível, o cara era o maior! Óbvio que isso merecia algo a mais, eu precisava que meus pais, irmão e irmãs achassem realmente genial eu ter ganhado aquele LP. Foi quando decidi transformar aquela história no fato mais foda da minha vida até então. Para isso, eu precisava de um detalhe que faria toda a diferença: um autógrafo do Chico! Por que não?

LP "Mata Virgem" autografado pelo Raul Seixas em 1979. Não lembro qual foi a pergunta, mas fui um dos 10 ouvintes que acertaram a resposta e fui buscar esse prêmio na antiga rádio Difusora. Há alguns bons anos precisei levantar um dinheiro e ofereci este vinil pelo melhor lance na internet, que na época apenas engatinhava. Cheguei a receber algumas ofertas e vários emails, incluindo dois muito gentis da Kika Seixas, ex-mulher do Raul, que se mostrou interessada. Mas eu logo me reequilibrei financeiramente e decidi não levar adiante o leilão.

Antecedentes criminais. Voltemos cinco ou seis anos nessa história, eu cursando o 4º ano primário. As notas muito boas e comportamento idem nos primeiros anos de estudo me credenciaram a ser incluído na principal turma da escola, a da professora Grael. Exigente, porém justa, a Dona Grael era um exemplo de educadora. Os alunos dela eram vistos em toda escola como uma espécie de “elite". Porém, naquela época eu começava não só a ter problemas com a matemática, como a simpatizar com a famosa turma do fundão. Daí a deixar de fazer as tarefas de matemática foi um pulinho. Assim que notou meu novo e preocupante comportamento, a professora Grael tratou de escrever um bilhete para minha mãe pedindo que ela cobrasse as lições de mim em casa, e exigiu que eu trouxesse o bilhete de volta assinado pela minha mãe, como prova de que ela estaria ciente do que estava ocorrendo. Com medo de levar uns cascudos, assinei eu mesmo o nome da minha mãe e mostrei para a professora. Semanas depois, minha mãe folheou meu caderno e descobriu a fraude. Levei uma boa sova. Enquanto eu ainda estava quente, ela escreveu um bilhete para a minha professora, onde dizia que nada sabia sobre o primeiro recado, e menos ainda do meu comportamento até então inédito. E foi clara: eu deveria trazer aquele bilhete assinado pela Dona Grael, pelo mesmo motivo que... você entendeu. Pois eu não tive dúvida e assinei eu mesmo esse novo bilhete, escrevendo ali o nome da professora Grael. Fiz isso com uma letra tremida que só (juro que ainda consigo lembrar daquela assinatura garranchada que fiz), e escrevi apenas "Grael". Me dei mal de novo. Minha professora sempre assinava com seu nome completo (Maria "alguma coisa" Grael), e eu não fazia ideia de que minha mãe conhecia a assinatura dela. Resultado: o couro comeu de novo, e dessa vez com intensidade dobrada.



Requintes de fantasia. Repare no que está grafado no canto inferior direito da capa do disco acima. Esqueça, não é o autógrafo dele. Peguei uma bic qualquer e fiz eu mesmo o serviço. Contei em casa que tinha tido um contato com o Chico Buarque no estúdio da rádio Difusora naquele mesmo dia, quando fui lá buscar o prêmio. Aparentemente, a história colou, mas ninguém pareceu dar para ela a importância que eu queria que dessem. Como assim?? Gente, eu conheci o Chico Buarque!! Pois não deram a mínima praquilo. Mas eu não, eu considerei aquela história tão fantástica, mas tão fantástica, que durante muito tempo cheguei a acreditar nela. Guardo este LP com o maior carinho. Ele é representativo de uma época importante para mim, como são os 14 ou 15 anos de idade na vida de qualquer pessoa. Mas ali foi mais que isso. Esse disco é um documento que ilustra uma passagem que hoje soa ingênua, mas que me traz um indisfarçável orgulho. Porque todos os office-boys faziam das suas, isso era um clássico, tratava-se quase de um ritual de passagem para qualquer menino da minha idade e com a minha origem. A diferença é que a grande maioria pegava o dinheiro das falcatruas para comprar um tênis importado ou um jeans americano contrabandeado via Paraguai. Gosto de saber que fui aquele menino que fez o que fez para comprar um LP, e um LP do Chico Buarque! Quis reter para mim canções que me emocionavam e que foram fundamentais para a minha formação cultural e pessoal. Ah, e antes que você pergunte, minha carreira de contraventor não teve sequência. A de fã do Chico, sim.


Em 2007, Chico Buarque esteve em Curitiba apresentando o show “Carioca”. Meu parceiro em dois sambas, o grande Wilson das Neves, sambista de primeira linha e baterista que acompanha o Chico em discos e shows desde a década de 1980 (ele aparece no vídeo acima), disse para eu estar no Guaíra uma hora antes do show. Ele chamaria o mestre em seu camarim e me apresentaria como amigo e parceiro. Fiquei muito a fim de ir, muito mesmo, mas desisti no último momento. O cara vive sob intenso assédio, não quis ser mais um a fazer isso só pra tirar uma foto ao lado dele. Tenho outros planos para essa história, para esse possível encontro. Acredito que tenha tudo para acontecer e dar muito certo, inclusive porque o motivo é realmente bom. Mas isso não tenho como contar, não ainda.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Intervalo



Durante muito tempo, Chico Buarque teve que explicar o fato de Noel Rosa ter sido uma das suas grandes influências na música, senão a principal delas. Neste vídeo fantástico, vemos uma apresentação do "Bando de Tangarás", conjunto surgido em 1929 e que tinha como integrantes, na sua primeira formação, Noel (o violonista em pé, à esquerda), Almirante, Braguinha, Henrique Brito e Alvinho (eu sei, no vídeo a conta não fecha, aparecem seis músicos). Noel, que na época era conhecido apenas como um bom violonista da Vila Isabel, era o mais jovem deles. Inspirado nos grupos regionais que faziam sucesso na época, o "Bando de Tangarás" existiu até 1933, a partir do que cada qual tomou seu rumo em carreiras individuais. Noel, Almirante e Braguinha (que depois mudou seu nome para João de Barro), foram os mais bem sucedidos.


Vamo falá do Norte
(sem autoria definida)

(refrão)
Quando nós saímos do norte
Foi pra no mundo mostrar
Como canta aqui nesta terra
Um bando de tangarás

Uma madama pra fazer economia
Comprou as perfumarias num tutu que ela encontrou
Saiu pra rua perfumada em todo canto
Aí o perfume fedeu tanto que a madama desmaiou, ai

Meu tangará, meu curió, meu terra-a-terra
E o meu canário da terra que é danado pra cantar
Eu também canto uma semana, um mês inteiro
E quando eu canto no terreiro inté a lua quer sambar, ai

Eu fui fazer minha compra na feira
Eu vi tanta roubalheira de se encabular
Tava um sujeito de roubar com uma tal febre
Vendendo gato por lebre, ratazana por gambá, ai

Na sepultura que eu fiz pra minha famia
Tinha um freguês por dia para se enterrar
Na minha vez quando eu cheguei ao pé da cova
E apesar de ela ser nova já não tinha mais lugar, ai

E lá no norte quando é boa a brincadeira
Lá vem bala e vem madeira, tem tabefe, tem punhá
Mas eu não temo nem cacete e nem garrucha
Levei dez tiros na fuça e depois disso eu fui sambar, ai

Dei um emprego, ai, ao filho do Zacaria
Só das onze ao meio dia que tinha que trabaiá
Mas o malandro pegar peso não podia
E além disso inda queria hora e meia pra almocar, ai

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O autógrafo do Chico – Cap.2: disco na mão


Em 1979 eu sonhava trabalhar em uma loja de discos. Passar o dia inteiro ouvindo música e do jeito que gostava de ouvir: bem alta, em caixas acústicas enormes, que jogassem o som na calçada do outro lado da rua.

Depois de alguns meses trabalhando no jornal apenas em funções externas, começaram a confiar a mim também serviços internos. Entre eles estava a produção de calhaus. Se você não sabe, calhaus são (ou eram) notícias ou artigos que servem (ou serviam) para preencher os espaços que aparecem nas edições dos jornais pela falta de material editorial ou por falha no cálculo da diagramação. Para produzir esse material, eu folheava todo dia os jornais Estadão e Folha, escolhia algumas matérias genéricas e de característica não datada, resumia o conteúdo e mudava o título das mesmas, datilografava tudo em laudas e guardava na minha gaveta. Quando o diagramador constatava os buracos, ele me dizia o tamanho dos calhaus que precisava e eu escolhia na gaveta os que entrariam.
Também reescrevia a seção de horóscopo. Isso mesmo, se a astróloga do jornal não mandava os textos em tempo, se ela saia em férias, eu fazia um omelete com coisas antigas dela, inventava novas situações, criava novas previsões sempre positivas, dicas de sorte e pronto, publique-se. Ou seja, aos 15 anos de idade eu acumulava as funções de office-boy, copy desk e astrólogo.


“Bijuterias”, de João Bosco e Aldir Blanc, foi a música-tema de abertura da novela “O Astro”, levada ao ar na TV Globo exatamente na época em que essa história acontece. A letra começa falada: "Em setembro, se Vênus me ajudar, virá alguém. Eu sou de virgem e só de imaginar me dá vertigem". A propósito, eu sou de virgem.

Para as tarefas internas eu tinha a minha mesa. Sobre ela, além de um telefone daqueles ainda de discar, havia um outro companheiro inseparável que já mencionei aqui: o rádio de pilha. Exato, eu tinha um rádio de pilha no meu trabalho, que na verdade não era meu, mas que eu considerava como tal, pois só eu mexia nele, onde ouvia a rádio Difusora AM quase o dia todo. Numa época em que ainda não existia FM, era nessa emissora AM que eu tomava contato com os grandes lançamentos da MPB. Tinha um programa que eu não perdia de jeito nenhum, que dava discos a quem ligasse para lá e acertasse uma determinada pergunta. Não lembro o nome do programa, mas nunca mais esqueci o número do telefone: 62-9834, tantas vezes disquei para lá. Desse programa, ganhei vários LPs que até hoje estão comigo. A coisa funcionava assim: eles recebiam semanalmente no estúdio algum artista que estava lançando um disco ou show. Aí, lá no meio da entrevista, o locutor fazia uma pergunta relacionada ao artista e sua obra. Os 10, 15 ou 5 primeiros ouvintes que conseguissem ligar e acertar a resposta, iam lá depois na sede da rádio pegar o prêmio, que era sempre um LP daquele artista. A sede da Difusora de São Paulo ficava no Alto do Sumaré, no mesmo prédio da antiga TV Tupi, onde depois se instalou a MTV (nota de atualização: hoje, é a sede da ESPN). Eu costumava ser ligeiro na ligação e quase sempre certeiro nas respostas. Na verdade, eu tinha uma estratégia. Assim que o locutor iniciava a pergunta eu já começava a discar. Ficava segurando o último número, o 4, que soltava só quando a pergunta era toda formulada. Muitas vezes eu era atendido de cara, em outras a linha só dava sinal de ocupado, tamanha a quantidade de gente que fazia a mesma coisa no mesmo momento. Fui na Difusora uma porção de vezes, onde recebi discos do Ivan Lins, João Nogueira, Milton Nascimento, entre outros. Até um do Raul Seixas autografado pelo próprio eu ganhei. Na rádio já me conheciam. A atendente me disse certo dia que eles brincavam que um dos LPs tinha que ser separado “praquele menino”.


O filme “Alta Fidelidade”, de onde essa cena hilária com o ótimo Jack Black foi tirada, não é uma inspiração para esse blog. Mas poderia ser. A história retrata com muito charme e bom humor passagens da vida do dono de uma loja de discos raros de vinil num subúrbio inglês. O papel principal é vivido pelo também ótimo ator John Cusack, e a trilha sonora é de primeiríssima.

Voltando aos pequenos delitos dessa fase - cuja origem abordei no post anterior - depois de aprender que não era tão difícil conseguir uma verba extra, não parei mais. Os mais leves consistiam em embolsar o dinheiro do táxi e fazer o serviço de ônibus, ou embolsar a grana do ônibus e fazer o serviço a pé, ou então pedir para o cobrador pra descer pela porta de trás porque eu tinha “pegado o ônibus errado”. Nos delitos mais complexos, eu pagava uma despesa e pedia uma nota com valor maior. Não muito maior, para não levantar suspeitas. De grão em grão, eu finalmente consegui juntar o valor total para entrar naquela loja de discos da rua ao lado. Fiz isso numa manhã fria, antes de pegar no batente. Os funcionários da loja ainda estavam subindo as portas de ferro e havia um aroma de café de boteco no ar. Foi a primeira vez na vida que entrei numa loja de discos para comprar. Entrei certo de que os atendentes esperavam que eu pedisse alguma coletânea da K-Tel.

Nos anos 1970, o selo K-Tel desbancava a Som Livre em vendas, editando intermináveis coletâneas de sucessos internacionais. Eram lançamentos que aconteciam simultaneamente em vários países, havia apenas o cuidado de adaptar o repertório à parada local. Os discos tinham muitas faixas, que eram praticamente espremidas umas nas outras. Mal a música anterior acabava, já começava a próxima.

Não, eu pedi mesmo foi "o último do Chico", que naquela época lançava um disco por ano. Eles me trouxeram o dito. Novinho, tinindo, o acetato impecável, completamente virgem de agulhas. A foto do Chico sorridente em frente a um cacho de samambaias era o que havia então de mais descolado para um artista já consagrado como ele. Paguei e saí de lá ansioso por ouvir todas aquelas músicas que eu já conhecia de cor de tanto ouvir na Difusora, mas que agora eram minhas. O álibi para chegar em casa à noite, depois da aula, com aquele LP debaixo do braço, comprado sabe-se lá com que dinheiro, eu já tinha. Claro, aquele haveria de ser mais um disco que ganhei por acertar uma pergunta blábláblá... Não. Dessa vez, eu queria algo diferente. Pois esse algo diferente veio de um fato ocorrido no tempo em que eu estudava no 4º ano primário, quando descobri um problema crônico que me acompanharia por todo o sempre: uma imensa aversão ao estudo da matemática. Como foi isso vou contar no próximo post.

Chico pediu à gravadora que encontrasse uma voz feminina desconhecida e de timbre suave, com a qual ele pudesse dialogar na belíssima "Pedaço de Mim", uma das faixas do disco de 1978. Foi assim que surgiu para a MPB a paulistana Zizi Possi

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O autógrafo do Chico – Cap.1: surge um malandro

Tenho até hoje esse LP do Chico Buarque autografado. Mas antes de contar como isso aconteceu, preciso relatar uma outra passagem. Uma que envolve a música de forma indireta, e que sem ela eu não teria conseguido comprar o disco.

Eu ainda era o office-boy do jornal A Gazeta da Zona Norte, em São Paulo. Tinha já completado 15 anos de idade, e continuava entregando meu pagamento integral em casa. A missão da família toda era juntar grana para darmos entrada em uma casa própria. Cada centavo que cada um de nós conseguia receber, servia para que meu pai juntasse uma grana e comprasse uma linha de telefone, que naquela época era um dos melhores investimentos que se podia fazer. Eu então sem um tostão no bolso, a não ser para alimentação e condução, nem considerava a possibilidade de comprar algo que gostasse, fosse o que fosse. Hoje isso seria muito complicado, num mundo em que o consumo é alimentado e realimentado constantemente. Mas naqueles idos a coisa era bem diferente, ainda mais para quem nasceu e foi criado dentro de uma realidade em que cada pequena conquista era uma grande vitória.

No final da década de 1970, as linhas telefônicas eram caríssimas e valorizavam rapidamente, ainda mais depois de instaladas, o que levava às vezes dois anos para acontecer. Se não me engano, meu pai chegou a juntar quatro linhas, que depois foram vendidas para que ele inteirasse o valor da entrada do sobrado em que ele e minha mãe moram até hoje. Sobre minha mesa, no jornal, havia um aparelho muito parecido com esse da foto acima. Mais adiante, esse telefone também vai entrar na história do autógrafo do Chico.

Era o início de 1979. A secretária do jornal e minha chefe imediata, a bela nissei Rosinha, mandou que eu fosse a uma fábrica no bairro da Casa Verde. Lá eu deveria procurar o operário Eduardo (que era diretor da escola de samba Império da Casa Verde), que me entregaria as letras dos sambas-enredo das agremiações da Zona Norte, para que o jornal publicasse na semana seguinte, véspera do Carnaval daquele ano. Chegando lá, fui com o Eduardo até uma sala com uma escrivaninha. Ele abriu a primeira gaveta e tirou de lá algumas folhas de sulfite, nelas estavam datilografadas as letras dos sambas das escolas da Zona Norte que iriam para a avenida naquele ano. O Eduardo me disse que eu deveria ir até uma copiadora ali perto e voltar para devolver a ele os originais. Peguei os papéis e fiquei olhando cabisbaixo praquilo, sem saber o que fazer. Ele percebeu a saia justa. “Você não tem dinheiro pra tirar xerox?”. Balancei a cabeça afirmativamente. “A firma só te deu o dinheiro contadinho pro ônibus?”. Balancei a cabeça afirmativamente de novo. Ele então tirou do bolso alguns cruzeiros (sim, cruzeiros) e me entregou: “Presta atenção, você vai atravessar a rua. pedir na papelaria que tirem uma cópia de cada folha e vai pagar com o meu dinheiro. Mas quero o recibo, entendeu?”. Fui e voltei com a nota. Foi quando o Eduardo me falou com a maior calma do mundo: “Presta atenção de novo: você vai levar esse recibo pra sua chefe e dizer que foi você que pagou a conta, entendeu?”. Entendi. “Como é seu nome mesmo? Então, vai lá, Marcelo. Isso é pra eles aprenderem. Não vai perder o recibo!”.

Por incrível que pareça, a Império da Casa Verde, uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo, localizada no bairro de mesmo nome, não tem o verde como uma de suas cores. Diz a lenda que naquela região havia uma fazenda cuja sede era pintada de verde, daí o nome do bairro. O Eduardo, que naquele dia me deu as letras dos sambas-enredo e me apresentou à malandragem, era integrante da União das Escolas de Samba de São Paulo.

O trajeto do ônibus da Casa Verde para Santana pareceu muito mais longo, quase uma eternidade. Como eu ia fazer aquilo? Não, eu não ia conseguir, minha cara ia me entregar, não vou fazer, não vou enganar ninguém. Fui suando frio o caminho todo. Aqui, é preciso que eu abra um parêntese. Claro que eu não era um santo, mas a verdade é que aos 15 anos de idade eu ainda guardava uma essência de "bom menino" que vinha desde minha infância. Quando fiz a primeira comunhão, aos 6 anos de idade, caçula da turma, na hora de fazer a confissão para poder comungar eu não sabia o que dizer. Não lembrava de nada de errado que tivesse cometido. Por sorte, meu irmão mais velho que eu foi antes de mim e, na volta, passou perto. Eu estava apavorado, perguntei pra ele “o que é que eu digo lá?”. “Ah, diz que você xingou o pai e a mãe, bateu nas irmãs e jogou bola na vidraça do vizinho”. Foi assim que confessei pro padre os pecados do meu irmão.

"O malandro é um personagem muito simpático na nossa cultura e, mais do que isso, ele é uma espécie de herói do povo, na medida em que consegue levar a vida apesar de uma sociedade individualista e de instituições que não se preocupam em melhorar a vida das pessoas. “O malandro é o barão da ralé”, como versou Chico Buarque." (por Share This, no blog Estalo)

Eu estava decidido a não seguir a orientação do Eduardo e assim entrei no jornal. Mas cheguei tão atordoado que esqueci que segurava a nota e as letras dos sambas na mesma mão. A Rosinha foi ligeira e puxou a nota de mim: "vou acertar já isso com você". Eu gelei. Ela abriu a gaveta, tirou os trocados correspondentes ao valor da nota e me entregou. Eu fiquei sem ação. Olhei praquele dinheiro repousado na palma da minha mão e fui mudo para a minha mesa, sem quase respirar. Quando finalmente o oxigênio voltou a circular pelo meu cérebro, a primeira coisa que me veio à cabeça foi “nossa... como foi fácil!”. Naquele momento, eu definitivamente dava adeus à infância. Instantaneamente, engendrei um plano. Sempre que eu pudesse fazer novos pequenos delitos como aquele, iria guardar o fruto da contravenção só para mim, sem entregar em casa. De trocado em trocado, eu juntaria dinheiro pra comprar o que eu mais queria há meses. Um jeans? Um tênis? Uma camiseta? Não, meu sonho de consumo naquele inicio de 1979 era o novo disco do Chico Buarque! O LP tinha as músicas “Cálice” e “Apesar de Você”, finalmente liberadas pela censura, além de muitas outras que eu adorava e cantava de cor fazia tempo - graças ao rádio AM, meu companheiro inseparável. Mas havia um problema. Mesmo que eu conseguisse todo o dinheiro, como chegaria em casa com aquele disco, já que eu não tinha outra fonte de renda além do salário-mínimo que entregava todo para a família? A resposta para essa pergunta virá na sequência.
 
 

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O primeiro show - parte final

Elis Regina em um momento do show "Transversal do Tempo". Foto sem crédito

Conhecia muita coisa da Elis pelo que tocava no rádio. Nos anos de 1975 e 1976, ela tinha alcançado enorme sucesso com um show antológico, o “Falso Brilhante”. Considerado um dos maiores espetáculos já produzidos na música brasileira em todos os tempos, “Falso Brilhante” foi decisivo para que Elis fosse alçada à condição de melhor cantora que o país já teve. Tal título era, e ainda hoje é, corroborado por alguns dos nomes mais importantes da nossa música, da crítica especializada e por grande parte da opinião pública. Ela estava no auge de sua técnica vocal e expressividade artística. A união musical com o pianista e arranjador César Camargo Mariano (também seu marido à época, com quem teve os filhos Pedro Camargo Mariano e Maria Rita) foi co-responsável pela guinada que sua carreira teve nesse período.
Depois de “Falso Brilhante”, Elis estréia o show “Transversal do Tempo”. Era 1978. O Brasil, ainda sob as rédeas da repressão política patrocinada pelo regime militar, vivia um momento especialmente difícil. A atmosfera do espetáculo estava impregnada dessa tensão. A sonoridade tinha um peso que incomodava, provocava. Elis era uma voz que se levantava contra a ordem vigente no país. Sua interpretação para “Cartomante”, de Ivan Lins e Vitor Martins, é um retrato empolgante disso.



Este vídeo, assim como o do post anterior, onde Elis canta "Fascinação", é da apresentação do "Transversal do Tempo" em Lisboa. Um fato interessante, aliás, foi o "Transversal" iniciar com "Fascinação", que foi uma das principais músicas do repertório do show anterior, "Falso Brilhante". A sensação pretendida, imagino, era de um "falso-Falso Brilhante". Nesses vídeos da apresentação em Portugal ela aparece muito mais contida do que esteve quando a vi em São Paulo. Aliás, a Elis pulou tanto naquela noite que acabou torcendo o tornozelo e tendo que encurtar um pouco o show, o que fez pedindo desculpas ao público enquanto as lágrimas desciam pelo seu rosto. O público lamentou no primeiro instante, mas logo em seguida se levantou para um aplauso consagrador. Plateia, músicos e estrela permaneceram varios minutos aplaudindo-se mutuamente. Olhei para os lados e vi muita gente chorando.

Não tenho lembranças de antes do show. Nenhuma. O teatro era o TAIB, Teatro de Arte Israelita Brasileiro, no bairro Bom Retiro, em São Paulo. Talvez me recorde vagamente da aglomeração na frente do teatro, mas não tenho certeza. Porém, jamais me esquecerei de quando aquela mulher surgiu no palco. O roteiro e a direção do show eram de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, com direção musical de César Camargo Mariano. A banda era formada pelos ótimos César (teclados), Natan Marques (guitarra e violão), Crispim del Cistia (guitarra e teclados), Fernando Cisão (baixo) e Dudu Portes (bateria). Quando a banda começou a tocar e o canhão de luz iluminou Elis no centro eu me assustei com o tamanho dela. Aquela mulher parecia enorme. O efeito da luz, a magia do palco, a altura do som, minha primeira vez numa platéia, tudo ajudava a criar um momento de quase fantasia. Mas certamente o carisma e a energia da "pimentinha", e principalmente a voz poderosa que saiu daquele microfone foram definitivos para fazer com que aquela mulher de apenas 1,53m de altura parecesse um mulherão aos meus olhos. Porque, naquele instante, eu não vi a Elis com os meus olhos, mas sim com a minha emoção. Inês de Castro, a jornalista com quem eu trabalhava e que me levou ao show, tinha me dado muito mais do que um show. Eu acabara de ser presenteado com um pedacinho de eternidade.



Em uma pesquisa feita pela Folha de São Paulo, em 2001, "Águas de Março", composta por Tom Jobim, foi eleita a melhor música brasileira de todos os tempos. A versão em dueto gravada com Elis em 1974, no álbum "Elis & Tom", e que aparece nesse vídeo, foi considerada uma das 10 mais importantes gravações de música popular no mundo. A fonte dessa informação é uma lembrança que tenho, anos atrás ouvi isso, mas não consegui encontrar uma confirmação oficial.