quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O autógrafo do Chico – Cap.1: surge um malandro

Tenho até hoje esse LP do Chico Buarque autografado. Mas antes de contar como isso aconteceu, preciso relatar uma outra passagem. Uma que envolve a música de forma indireta, e que sem ela eu não teria conseguido comprar o disco.

Eu ainda era o office-boy do jornal A Gazeta da Zona Norte, em São Paulo. Tinha já completado 15 anos de idade, e continuava entregando meu pagamento integral em casa. A missão da família toda era juntar grana para darmos entrada em uma casa própria. Cada centavo que cada um de nós conseguia receber, servia para que meu pai juntasse uma grana e comprasse uma linha de telefone, que naquela época era um dos melhores investimentos que se podia fazer. Eu então sem um tostão no bolso, a não ser para alimentação e condução, nem considerava a possibilidade de comprar algo que gostasse, fosse o que fosse. Hoje isso seria muito complicado, num mundo em que o consumo é alimentado e realimentado constantemente. Mas naqueles idos a coisa era bem diferente, ainda mais para quem nasceu e foi criado dentro de uma realidade em que cada pequena conquista era uma grande vitória.

No final da década de 1970, as linhas telefônicas eram caríssimas e valorizavam rapidamente, ainda mais depois de instaladas, o que levava às vezes dois anos para acontecer. Se não me engano, meu pai chegou a juntar quatro linhas, que depois foram vendidas para que ele inteirasse o valor da entrada do sobrado em que ele e minha mãe moram até hoje. Sobre minha mesa, no jornal, havia um aparelho muito parecido com esse da foto acima. Mais adiante, esse telefone também vai entrar na história do autógrafo do Chico.

Era o início de 1979. A secretária do jornal e minha chefe imediata, a bela nissei Rosinha, mandou que eu fosse a uma fábrica no bairro da Casa Verde. Lá eu deveria procurar o operário Eduardo (que era diretor da escola de samba Império da Casa Verde), que me entregaria as letras dos sambas-enredo das agremiações da Zona Norte, para que o jornal publicasse na semana seguinte, véspera do Carnaval daquele ano. Chegando lá, fui com o Eduardo até uma sala com uma escrivaninha. Ele abriu a primeira gaveta e tirou de lá algumas folhas de sulfite, nelas estavam datilografadas as letras dos sambas das escolas da Zona Norte que iriam para a avenida naquele ano. O Eduardo me disse que eu deveria ir até uma copiadora ali perto e voltar para devolver a ele os originais. Peguei os papéis e fiquei olhando cabisbaixo praquilo, sem saber o que fazer. Ele percebeu a saia justa. “Você não tem dinheiro pra tirar xerox?”. Balancei a cabeça afirmativamente. “A firma só te deu o dinheiro contadinho pro ônibus?”. Balancei a cabeça afirmativamente de novo. Ele então tirou do bolso alguns cruzeiros (sim, cruzeiros) e me entregou: “Presta atenção, você vai atravessar a rua. pedir na papelaria que tirem uma cópia de cada folha e vai pagar com o meu dinheiro. Mas quero o recibo, entendeu?”. Fui e voltei com a nota. Foi quando o Eduardo me falou com a maior calma do mundo: “Presta atenção de novo: você vai levar esse recibo pra sua chefe e dizer que foi você que pagou a conta, entendeu?”. Entendi. “Como é seu nome mesmo? Então, vai lá, Marcelo. Isso é pra eles aprenderem. Não vai perder o recibo!”.

Por incrível que pareça, a Império da Casa Verde, uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo, localizada no bairro de mesmo nome, não tem o verde como uma de suas cores. Diz a lenda que naquela região havia uma fazenda cuja sede era pintada de verde, daí o nome do bairro. O Eduardo, que naquele dia me deu as letras dos sambas-enredo e me apresentou à malandragem, era integrante da União das Escolas de Samba de São Paulo.

O trajeto do ônibus da Casa Verde para Santana pareceu muito mais longo, quase uma eternidade. Como eu ia fazer aquilo? Não, eu não ia conseguir, minha cara ia me entregar, não vou fazer, não vou enganar ninguém. Fui suando frio o caminho todo. Aqui, é preciso que eu abra um parêntese. Claro que eu não era um santo, mas a verdade é que aos 15 anos de idade eu ainda guardava uma essência de "bom menino" que vinha desde minha infância. Quando fiz a primeira comunhão, aos 6 anos de idade, caçula da turma, na hora de fazer a confissão para poder comungar eu não sabia o que dizer. Não lembrava de nada de errado que tivesse cometido. Por sorte, meu irmão mais velho que eu foi antes de mim e, na volta, passou perto. Eu estava apavorado, perguntei pra ele “o que é que eu digo lá?”. “Ah, diz que você xingou o pai e a mãe, bateu nas irmãs e jogou bola na vidraça do vizinho”. Foi assim que confessei pro padre os pecados do meu irmão.

"O malandro é um personagem muito simpático na nossa cultura e, mais do que isso, ele é uma espécie de herói do povo, na medida em que consegue levar a vida apesar de uma sociedade individualista e de instituições que não se preocupam em melhorar a vida das pessoas. “O malandro é o barão da ralé”, como versou Chico Buarque." (por Share This, no blog Estalo)

Eu estava decidido a não seguir a orientação do Eduardo e assim entrei no jornal. Mas cheguei tão atordoado que esqueci que segurava a nota e as letras dos sambas na mesma mão. A Rosinha foi ligeira e puxou a nota de mim: "vou acertar já isso com você". Eu gelei. Ela abriu a gaveta, tirou os trocados correspondentes ao valor da nota e me entregou. Eu fiquei sem ação. Olhei praquele dinheiro repousado na palma da minha mão e fui mudo para a minha mesa, sem quase respirar. Quando finalmente o oxigênio voltou a circular pelo meu cérebro, a primeira coisa que me veio à cabeça foi “nossa... como foi fácil!”. Naquele momento, eu definitivamente dava adeus à infância. Instantaneamente, engendrei um plano. Sempre que eu pudesse fazer novos pequenos delitos como aquele, iria guardar o fruto da contravenção só para mim, sem entregar em casa. De trocado em trocado, eu juntaria dinheiro pra comprar o que eu mais queria há meses. Um jeans? Um tênis? Uma camiseta? Não, meu sonho de consumo naquele inicio de 1979 era o novo disco do Chico Buarque! O LP tinha as músicas “Cálice” e “Apesar de Você”, finalmente liberadas pela censura, além de muitas outras que eu adorava e cantava de cor fazia tempo - graças ao rádio AM, meu companheiro inseparável. Mas havia um problema. Mesmo que eu conseguisse todo o dinheiro, como chegaria em casa com aquele disco, já que eu não tinha outra fonte de renda além do salário-mínimo que entregava todo para a família? A resposta para essa pergunta virá na sequência.
 
 

11 comentários:

Beth Kasper disse...

Como diz a personagem da novela "are baba", JESUS ME ABANA!!!!
nÃO imaginas o quanto me identifiquei com tua narrativa. Realmente vivemos de maneira igual apesar de você ter crescido numa já cidade grande e eu, nesta cidadezinha de "m" que é ainda hoje. Dificuldades financeiras, valores morais no extremo o que nos obrigava a sermos bons meninos (e eu sendo menina, maior a responsa...) e uma paixão por Chico.
Noooooooooossa!

estou na expectativa para saber o restante de sua história.
Lindo e comovente o que narraste até aqui.
Abraço

Marcelo Amorim disse...

Putz, Liz, adorei saber dessas nossas coincidências e afinidades. Como disse alguém (Fernando Pessoa?), se quisermos falar do mundo devemos falar da nossa aldeia. E é isso mesmo, quando contamos nossas experiências mais pessoais é quando mais nos aproximamos das outras pessoas. Beijo pra você. Semana que vem continuo a história.

Giovana disse...

Olá Marcelo,
Adorando ler seus textos, parabéns pela dinâmica e por resgatar valores um tanto empoeirados.
Feliz de encontrar esse blog
Sua mais nova leitora
SUCESSO

Marcelo Amorim disse...

Olá, Giovana, feliz fico eu de saber que você esteve por aqui e gostou do que viu. Espero contar com seus olhos atentos mais vezes. Beijos e seja muito bem-vinda.

Leila Pugnaloni disse...

Olha só, a malandragem daquele tempo chega a ser poética...

Marcelo Amorim disse...

Pois é, Leila, tão poética que às vezes acabava em música :-)

T Karpa disse...

Ainda não li tudo, por falta de tempo, mas é preciso dizer que você conta história muito bem! Tou curiosa para ler o resto (desta postagem)...

Marcelo Amorim disse...

Oi, Tati, fico muito feliz com seu elogio. Tomara que eu continue acertando o tom dessas narrativas, pra que você continue vindo aqui e gostando. Beijo

Francis disse...

Tenho esse LP. Todo trabalho de Chico Buarque tem a marca da arte com seriedade.

Daniel Lima disse...

O Malandro da foto utilizada aí sou Eu!
No espetáculo 'O Malandro de três Vintêns', adaptação da Ópera do malandro!

A Foto é show de bola!

Marcelo Amorim disse...

É mesmo, Daniel? Que bacana, cara! Um prazer receber sua visita aqui. Um abração!