terça-feira, 15 de setembro de 2009

O autógrafo do Chico – Cap.2: disco na mão


Em 1979 eu sonhava trabalhar em uma loja de discos. Passar o dia inteiro ouvindo música e do jeito que gostava de ouvir: bem alta, em caixas acústicas enormes, que jogassem o som na calçada do outro lado da rua.

Depois de alguns meses trabalhando no jornal apenas em funções externas, começaram a confiar a mim também serviços internos. Entre eles estava a produção de calhaus. Se você não sabe, calhaus são (ou eram) notícias ou artigos que servem (ou serviam) para preencher os espaços que aparecem nas edições dos jornais pela falta de material editorial ou por falha no cálculo da diagramação. Para produzir esse material, eu folheava todo dia os jornais Estadão e Folha, escolhia algumas matérias genéricas e de característica não datada, resumia o conteúdo e mudava o título das mesmas, datilografava tudo em laudas e guardava na minha gaveta. Quando o diagramador constatava os buracos, ele me dizia o tamanho dos calhaus que precisava e eu escolhia na gaveta os que entrariam.
Também reescrevia a seção de horóscopo. Isso mesmo, se a astróloga do jornal não mandava os textos em tempo, se ela saia em férias, eu fazia um omelete com coisas antigas dela, inventava novas situações, criava novas previsões sempre positivas, dicas de sorte e pronto, publique-se. Ou seja, aos 15 anos de idade eu acumulava as funções de office-boy, copy desk e astrólogo.


“Bijuterias”, de João Bosco e Aldir Blanc, foi a música-tema de abertura da novela “O Astro”, levada ao ar na TV Globo exatamente na época em que essa história acontece. A letra começa falada: "Em setembro, se Vênus me ajudar, virá alguém. Eu sou de virgem e só de imaginar me dá vertigem". A propósito, eu sou de virgem.

Para as tarefas internas eu tinha a minha mesa. Sobre ela, além de um telefone daqueles ainda de discar, havia um outro companheiro inseparável que já mencionei aqui: o rádio de pilha. Exato, eu tinha um rádio de pilha no meu trabalho, que na verdade não era meu, mas que eu considerava como tal, pois só eu mexia nele, onde ouvia a rádio Difusora AM quase o dia todo. Numa época em que ainda não existia FM, era nessa emissora AM que eu tomava contato com os grandes lançamentos da MPB. Tinha um programa que eu não perdia de jeito nenhum, que dava discos a quem ligasse para lá e acertasse uma determinada pergunta. Não lembro o nome do programa, mas nunca mais esqueci o número do telefone: 62-9834, tantas vezes disquei para lá. Desse programa, ganhei vários LPs que até hoje estão comigo. A coisa funcionava assim: eles recebiam semanalmente no estúdio algum artista que estava lançando um disco ou show. Aí, lá no meio da entrevista, o locutor fazia uma pergunta relacionada ao artista e sua obra. Os 10, 15 ou 5 primeiros ouvintes que conseguissem ligar e acertar a resposta, iam lá depois na sede da rádio pegar o prêmio, que era sempre um LP daquele artista. A sede da Difusora de São Paulo ficava no Alto do Sumaré, no mesmo prédio da antiga TV Tupi, onde depois se instalou a MTV (nota de atualização: hoje, é a sede da ESPN). Eu costumava ser ligeiro na ligação e quase sempre certeiro nas respostas. Na verdade, eu tinha uma estratégia. Assim que o locutor iniciava a pergunta eu já começava a discar. Ficava segurando o último número, o 4, que soltava só quando a pergunta era toda formulada. Muitas vezes eu era atendido de cara, em outras a linha só dava sinal de ocupado, tamanha a quantidade de gente que fazia a mesma coisa no mesmo momento. Fui na Difusora uma porção de vezes, onde recebi discos do Ivan Lins, João Nogueira, Milton Nascimento, entre outros. Até um do Raul Seixas autografado pelo próprio eu ganhei. Na rádio já me conheciam. A atendente me disse certo dia que eles brincavam que um dos LPs tinha que ser separado “praquele menino”.


O filme “Alta Fidelidade”, de onde essa cena hilária com o ótimo Jack Black foi tirada, não é uma inspiração para esse blog. Mas poderia ser. A história retrata com muito charme e bom humor passagens da vida do dono de uma loja de discos raros de vinil num subúrbio inglês. O papel principal é vivido pelo também ótimo ator John Cusack, e a trilha sonora é de primeiríssima.

Voltando aos pequenos delitos dessa fase - cuja origem abordei no post anterior - depois de aprender que não era tão difícil conseguir uma verba extra, não parei mais. Os mais leves consistiam em embolsar o dinheiro do táxi e fazer o serviço de ônibus, ou embolsar a grana do ônibus e fazer o serviço a pé, ou então pedir para o cobrador pra descer pela porta de trás porque eu tinha “pegado o ônibus errado”. Nos delitos mais complexos, eu pagava uma despesa e pedia uma nota com valor maior. Não muito maior, para não levantar suspeitas. De grão em grão, eu finalmente consegui juntar o valor total para entrar naquela loja de discos da rua ao lado. Fiz isso numa manhã fria, antes de pegar no batente. Os funcionários da loja ainda estavam subindo as portas de ferro e havia um aroma de café de boteco no ar. Foi a primeira vez na vida que entrei numa loja de discos para comprar. Entrei certo de que os atendentes esperavam que eu pedisse alguma coletânea da K-Tel.

Nos anos 1970, o selo K-Tel desbancava a Som Livre em vendas, editando intermináveis coletâneas de sucessos internacionais. Eram lançamentos que aconteciam simultaneamente em vários países, havia apenas o cuidado de adaptar o repertório à parada local. Os discos tinham muitas faixas, que eram praticamente espremidas umas nas outras. Mal a música anterior acabava, já começava a próxima.

Não, eu pedi mesmo foi "o último do Chico", que naquela época lançava um disco por ano. Eles me trouxeram o dito. Novinho, tinindo, o acetato impecável, completamente virgem de agulhas. A foto do Chico sorridente em frente a um cacho de samambaias era o que havia então de mais descolado para um artista já consagrado como ele. Paguei e saí de lá ansioso por ouvir todas aquelas músicas que eu já conhecia de cor de tanto ouvir na Difusora, mas que agora eram minhas. O álibi para chegar em casa à noite, depois da aula, com aquele LP debaixo do braço, comprado sabe-se lá com que dinheiro, eu já tinha. Claro, aquele haveria de ser mais um disco que ganhei por acertar uma pergunta blábláblá... Não. Dessa vez, eu queria algo diferente. Pois esse algo diferente veio de um fato ocorrido no tempo em que eu estudava no 4º ano primário, quando descobri um problema crônico que me acompanharia por todo o sempre: uma imensa aversão ao estudo da matemática. Como foi isso vou contar no próximo post.

Chico pediu à gravadora que encontrasse uma voz feminina desconhecida e de timbre suave, com a qual ele pudesse dialogar na belíssima "Pedaço de Mim", uma das faixas do disco de 1978. Foi assim que surgiu para a MPB a paulistana Zizi Possi

9 comentários:

brunonegromonte disse...

Marcelo, tenho acompanhado cada capítulo dessa odisséia em busca do autógrafo do Chico. Desde o primeiro post relacionado que anseio pelo próximo. O mesmo está acontecendo com este...
Parabéns!

Marcelo Amorim disse...

Pôxa, Bruno, que coisa boa saber do teu interesse pelo que tenho escrito. Pode ter certeza de que isso me dá a maior alegria. E segura as pontas aí que já já chego ao final dessa história :-)

Francis disse...

De volta Marcelo. Zizi Possi é muito afinada. Vi seu show Per Amore, conversei com ela. Gosto da canção italiana e o Passione também é muito bonito. "Pedaço de Mim" era muito ouvida nessa época. Visite meu blog "Sol Escrito". Abraços.

Marcelo Amorim disse...

Bem-vindo de volta, Francis. Quer dizer que você conversou com a Zizi, é? Ela é dona de uma das vozes mais bonitas da nossa música, sem dúvida. Vou conhecer seu blog, sim. Um abraço

Marcelo Amorim disse...

Francis, me passa o link do seu blog, por favor.

Francis disse...

E também conheci Luiza, muito simpática e a voz está crescendo, ritmada. Quando Zizi lançou Passione, que tem "Anema e cuore", com Chico, eu enlouqueci. Dediquei-lhe um poema escrito em italiano, feito em papel linho chamado "Molo": Scende la sera / il sole fuggi / impossibili non ricordarti. / Il mare se fin'ora era azzuro, diventa nero, /la barca che se avvicina / tarda ad arrivare ao molo /perché non ti porta / anche se soltanto/ obbidendo ao vento./E sun naltro molo forse stai / a aguardare altri navi / su qual nemmeno appaio. Link: http.solescrito.blogspot.com Email: fran.borg@hotmail.com

Marcelo Amorim disse...

Obrigado pelo link, Francis. Quanto ao poema que você dedicou à Zizi, não entendo italiano, mas foi um bonito gesto, sem dúvida. Depois vou visitar seu blog e comento lá. Um abraço.

Francis disse...

Cai a tarde e o sol foge: impossível não te recordar. O mar, até agora era azul, mas torna-se negro. O barco que se avista, tarda a chegar ao cais e porque não vens, vem manso, devagar, obedecendo ao vento. E noutro cais talvez estejas a a aguardar outros navios, onde também não apareço.

Marcelo Amorim disse...

Belo texto, Francis, inspirado como sempre. Grande final de semana pra você.