terça-feira, 22 de setembro de 2009

O autógrafo do Chico - último capítulo

Lá atrás do tempo, autógrafo era todo tipo de texto escrito de próprio punho pelo autor. O conceito foi sendo simplificado até chegar ao que se tornou: tão somente a assinatura de um artista, de uma pessoa famosa, ou mais atualmente ainda, de uma celebridade. Simboliza um momento único na vida do fã, pois adquire status de documento que comprova que ele teve um contato pessoal com seu ídolo.

Eu tinha chegado até ali, juntei trocado após trocado semanas a fio, até conseguir comprar o disco que tanto queria. Tinha também um álibi inconteste para aparecer com aquele LP em casa. Ou seja, tudo parecia perfeito, e talvez por isso mesmo eu tenha começado a sentir falta de algum ingrediente mais retumbante na história. Aquilo era um acontecimento muito signitficativo para mim, eu não podia simplesmente chegar em casa e dizer: “olhem, ganhei mais um disco da rádio”. Isso ia passar batido, ninguém na minha família dava ao Chico Buarque metade da importância que eu dava. Eu vibrava com aquelas letras, com aquelas metáforas, com as rimas bem construídas, as melodias inspiradas, as críticas políticas quase sempre veladas, tudo de alto nível, o cara era o maior! Óbvio que isso merecia algo a mais, eu precisava que meus pais, irmão e irmãs achassem realmente genial eu ter ganhado aquele LP. Foi quando decidi transformar aquela história no fato mais foda da minha vida até então. Para isso, eu precisava de um detalhe que faria toda a diferença: um autógrafo do Chico! Por que não?

LP "Mata Virgem" autografado pelo Raul Seixas em 1979. Não lembro qual foi a pergunta, mas fui um dos 10 ouvintes que acertaram a resposta e fui buscar esse prêmio na antiga rádio Difusora. Há alguns bons anos precisei levantar um dinheiro e ofereci este vinil pelo melhor lance na internet, que na época apenas engatinhava. Cheguei a receber algumas ofertas e vários emails, incluindo dois muito gentis da Kika Seixas, ex-mulher do Raul, que se mostrou interessada. Mas eu logo me reequilibrei financeiramente e decidi não levar adiante o leilão.

Antecedentes criminais. Voltemos cinco ou seis anos nessa história, eu cursando o 4º ano primário. As notas muito boas e comportamento idem nos primeiros anos de estudo me credenciaram a ser incluído na principal turma da escola, a da professora Grael. Exigente, porém justa, a Dona Grael era um exemplo de educadora. Os alunos dela eram vistos em toda escola como uma espécie de “elite". Porém, naquela época eu começava não só a ter problemas com a matemática, como a simpatizar com a famosa turma do fundão. Daí a deixar de fazer as tarefas de matemática foi um pulinho. Assim que notou meu novo e preocupante comportamento, a professora Grael tratou de escrever um bilhete para minha mãe pedindo que ela cobrasse as lições de mim em casa, e exigiu que eu trouxesse o bilhete de volta assinado pela minha mãe, como prova de que ela estaria ciente do que estava ocorrendo. Com medo de levar uns cascudos, assinei eu mesmo o nome da minha mãe e mostrei para a professora. Semanas depois, minha mãe folheou meu caderno e descobriu a fraude. Levei uma boa sova. Enquanto eu ainda estava quente, ela escreveu um bilhete para a minha professora, onde dizia que nada sabia sobre o primeiro recado, e menos ainda do meu comportamento até então inédito. E foi clara: eu deveria trazer aquele bilhete assinado pela Dona Grael, pelo mesmo motivo que... você entendeu. Pois eu não tive dúvida e assinei eu mesmo esse novo bilhete, escrevendo ali o nome da professora Grael. Fiz isso com uma letra tremida que só (juro que ainda consigo lembrar daquela assinatura garranchada que fiz), e escrevi apenas "Grael". Me dei mal de novo. Minha professora sempre assinava com seu nome completo (Maria "alguma coisa" Grael), e eu não fazia ideia de que minha mãe conhecia a assinatura dela. Resultado: o couro comeu de novo, e dessa vez com intensidade dobrada.



Requintes de fantasia. Repare no que está grafado no canto inferior direito da capa do disco acima. Esqueça, não é o autógrafo dele. Peguei uma bic qualquer e fiz eu mesmo o serviço. Contei em casa que tinha tido um contato com o Chico Buarque no estúdio da rádio Difusora naquele mesmo dia, quando fui lá buscar o prêmio. Aparentemente, a história colou, mas ninguém pareceu dar para ela a importância que eu queria que dessem. Como assim?? Gente, eu conheci o Chico Buarque!! Pois não deram a mínima praquilo. Mas eu não, eu considerei aquela história tão fantástica, mas tão fantástica, que durante muito tempo cheguei a acreditar nela. Guardo este LP com o maior carinho. Ele é representativo de uma época importante para mim, como são os 14 ou 15 anos de idade na vida de qualquer pessoa. Mas ali foi mais que isso. Esse disco é um documento que ilustra uma passagem que hoje soa ingênua, mas que me traz um indisfarçável orgulho. Porque todos os office-boys faziam das suas, isso era um clássico, tratava-se quase de um ritual de passagem para qualquer menino da minha idade e com a minha origem. A diferença é que a grande maioria pegava o dinheiro das falcatruas para comprar um tênis importado ou um jeans americano contrabandeado via Paraguai. Gosto de saber que fui aquele menino que fez o que fez para comprar um LP, e um LP do Chico Buarque! Quis reter para mim canções que me emocionavam e que foram fundamentais para a minha formação cultural e pessoal. Ah, e antes que você pergunte, minha carreira de contraventor não teve sequência. A de fã do Chico, sim.


Em 2007, Chico Buarque esteve em Curitiba apresentando o show “Carioca”. Meu parceiro em dois sambas, o grande Wilson das Neves, sambista de primeira linha e baterista que acompanha o Chico em discos e shows desde a década de 1980 (ele aparece no vídeo acima), disse para eu estar no Guaíra uma hora antes do show. Ele chamaria o mestre em seu camarim e me apresentaria como amigo e parceiro. Fiquei muito a fim de ir, muito mesmo, mas desisti no último momento. O cara vive sob intenso assédio, não quis ser mais um a fazer isso só pra tirar uma foto ao lado dele. Tenho outros planos para essa história, para esse possível encontro. Acredito que tenha tudo para acontecer e dar muito certo, inclusive porque o motivo é realmente bom. Mas isso não tenho como contar, não ainda.

3 comentários:

Beth Kasper disse...

Noooossa, Marcelo!
que história rica e emocionante! Mesmo sendo menina me vi em muitas situações tuas (claro, com diferenças) mas o "sentimento" com relação à admiração ao Chico, igual!
Com uma diferença: como era menina,vivendo no interior do interior, com acesso somente ao rádio, sempre me decepcionava quando afinal conhecia por fotos alguém que até então só havia ouvido a voz.
Chico foi o primeiro a não me decepcionar. Além de tudo o que ele já representava para mim, ainda era liiiiiiiiiiiiindo de morrer!
Perfeição total, para Liz!

Marcelo Amorim disse...

Pois é, Liz, além daquele talento todo e do grande caráter, o cara ainda é bonito. E também elegante no palco. Elegância é uma das características que mais admiro nas pessoas. Outro que é refinado no modo de ser e que faz transparecer isso também no palco é o Edu Lobo. Assisti uma apresentação dele em Sampa e foi irretocável. Fora isso, é uma felicidade muito grande pra mim saber que eu e você coincidimos tanto nessas coisas que moldaram nosso espírito e sensibilidade. Beijão procê.

Beth Kasper disse...

Ah....Edu Lobo! sim, outra figura marcante pra mim. Tantas músicas que me tocaram tb. Uma delas dizia "minha noiva é meu rosário, no seu corpo vou rezar" eu achava demais de lindo!
Abraço pra você tb.