terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Uma canção inacabada – parte 1



A bola foi lançada com muita força. Mesmo assim ele correu tentando alcançá-la para finalizar aquele contra-ataque aparentemente mortal, até que se deu por vencido e a bola se perdeu pela linha de fundo. Respirou e ia voltando para o meio de campo quando a voz de uma amiga, que ele nem tinha notado estar por ali, interrompeu sua concentração no jogo: “Que loucura o que aconteceu com a Rô, hein?”. Ela formulou a frase como faz um jogador do mesmo time quando procura um parceiro para uma tabela, contando com sua cumplicidade. – O que aconteceu?, perguntou ele. “Como assim? Você não sabe?” – Não sei de nada, o que aconteceu com a Rosângela?, ele insistiu. “Cê ta brincando, vai dizer que não sabe que ela morreu!” A bola foi lançada de novo, mas desta vez ele nem sequer esboçou reação. Chegou mais perto da amiga, com a respiração agora mais acelerada do que segundos atrás, após o pique inútil. “Como é que é?”. “Nossa, eu não te liguei, ninguém te ligou, porque todo mundo tinha certeza que você ia ser o primeiro a saber o que tinha acontecido. Eu achei que você não tinha ido no enterro porque tava muito triste, não por que não sabia.” O time precisou colocar outro atacante em seu lugar. Depois de andar pelo clube sem muita direção, perguntando para outras pessoas mais próximas se era mesmo verdade aquilo; depois de se dar conta de que a notícia era confirmada em todas as respostas; depois de sentir uma revolta muito grande no estômago e chorar muito, ele decidiu ir à casa dela. O clube onde haviam se conhecido, onde sua família e a família dela passavam praticamente todos os domingos, e que por ser domingo lá estava ele, ficava muito mais longe de onde ela morava do que o bairro onde ele residia, que por sua vez já era suficientemente distante.


(Edu Lobo apresenta Nana Caymmi, que canta "Dora", de Dorival Caymmi. Ao piano, Nelson Ayres)
Em uma noite de 1942, um bloco de frevo passou em frente ao hotel em que Dorival Caymmi estava hospedado, em Recife. "Veio aquele grupo cantando, tocando, e na frente uma passista que dançava muito bem. Olhei para ela e achei um nome: Dora. Aí, comecei: 'Dora rainha do frevo e do maracatu...'" , contou Caymmi, nostálgico. "Era uma hora da manhã." (fonte: Marie Claire)

Rosângela vivia numa região totalmente oposta, o que em São Paulo significa uma viagem. Decerto, ir à casa dela aos sábados e domingos rendia um bom tempo de leitura nas duas linhas de ônibus que ele pegava e percorria praticamente de cabo a rabo, a “Jardim Brasil – Museu do Ipiranga” e a “Sacoman – Divisa Diadema”. Juntos, os dois trajetos somavam uma hora e meia de percurso, isso porque no fim de semana o trânsito era bem mais livre. Fazia coisa de 10 ou 12 dias que eles não se viam nem se falavam. Namoravam há cerca de quatro meses apenas, e tinham combinado uns dias de afastamento. Na verdade, foi ela quem pediu isso, até que conseguisse resolver um problema que a estava incomodando muito, e que acabou, embora involuntariamente, contribuindo para a tragédia que a vitimou.


(João Bosco e Ivan Lins cantam "Madalena", de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza)
Em 1970, o letrista Ronaldo Monteiro de Souza, parceiro de Ivan Lins, tinha terminado o namoro de três anos com da carioca Vera Regina. Chateado, foi até o bar Cabral 1500, em Copacabana. "Naquela época a avenida Atlântica só tinha uma pista, o mar quebrava pertinho da calçada. Daí tirei a ideia de que 'o mar era uma gota, comparado ao pranto meu'. Escrevi a letra em um guardanapo com a caneta do garçom. Não tive coragem de escrever Vera Regina, Madalena foi o primeiro nome que me ocorreu", conta.


Desta vez, ele não leu nem os letreiros das fachadas comerciais. No caminho, foi pensando em tudo o tempo todo. Por um instante, chegou a apostar numa brincadeira de mau gosto. Quem sabe a Rosângela o receberia no portão com a cabeça levemente inclinada para a direita, como sempre fazia quando sorria seu sorriso mais doce. Ela era sua primeira namorada oficial. Ele, que ainda era um bocado tímido, que não tinha grana nem idade para ter carro, que não era o mais bonito ou divertido da turma, só vira uma chance de conquistar aquela que era considerada por muitos a garota mais bonita do clube. Não que ela já não tivesse demonstrado gostar dele. Não que ela tivesse se negado a girar de mãos dadas com ele pelo salão por incontáveis marchinhas na última noite do Carnaval passado. Não que no fim do baile ela não o tivesse presenteado com a fita vermelha que usou em seu pescoço e que compunha a fantasia de gata que ela mesma confeccionou e que levou o prêmio de fantasia mais bonita. Mas ela tinha um namorado há tempos, o que era sabido por todos. O rapaz não era sócio do clube, mas morava perto da casa dela e tinha carro. Foda-se! No final da tarde daquele domingo ele tomou coragem e chamou a Rô para que ela "visse umas músicas que eu tinha feito". Imagine, para que ela “visse” umas músicas, a paixão e suas imprecisões. Ela concordou, e os dois se encontraram a sós na arquibancada da última quadra. Ele já a esperava com o violão.


(Léo Jaime Chico Buarque cantam "Morena dos olhos d'água", composta por Chico para a bela Eleonora Mendes Caldeira)

“Uma noite conheci uma gata / certo que era apenas uma linda gata / mas eu não sabia nada dessa estranha gata, vejam / me vesti de supermouse e não lhe causei medo, creiam / uma gata / uma gata / que não era de telhado e não tinha nada / da rotina / das felinas do meu bairro / Tinha até laço de fita presa no pescoço, firme / ao invés de beber leite era refrigerante, grande / uma gata / uma gata / que não era de telhado e não tinha nada da rotina / das felinas do meu bairro / Fiquei tão surpreso pelo seu comportamento novo / que daqui pra frente decidi acompanhá-la / Pois minha gata / minha gata / não é dessas que fazem questão / que os gatos / a namorem / escondidos no porão”

(continua)

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