quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Uma canção inacabada - parte 2


Gaguejando um pouco, envergonhado um pouco, ele cantou para uma encantada Rosângela as duas novas músicas que tinha acabado de compor. Na verdade, havia mais uma, que ele não quis mostrar nem chegou a comentar que existia, apesar de considerá-la a melhor das três. Mas era uma canção que ainda estava terminada. Ou melhor, a canção parecia não querer se fechar ainda. Se bem que os raros amigos que já tinham ouvido a parte pronta até então juravam que não faltava mais nada. Mas ele não se convencia disso, sentia que aquela música ainda precisava de algo mais, só não sabia o que. Uma nova estrofe? Um verso ali? Quem sabe um refrão? Por enquanto ele decidiu deixá-la de lado, e só quando sentisse que ela estava de fato acabada, aí sim ele chamaria de novo a Rô para que ela conhecesse a melhor das três canções, aquela que ele tinha começado a fazer logo que se deu conta de que estava apaixonado por aquela moça que ele achava que não era para ele. E ele ainda achava isso, mas o que importava agora era que as duas músicas que ele fez inspiradas naquela deliciosa noite de Carnaval tinham dado mais do que certo. Naquela mesma tarde, um tantinho menos tenso daquele encontro na arquibancada vazia, ele ouviu a gata, já há muito despida de sua fantasia, prometer que ia terminar o namoro que a fazia infeliz.

“E como é que fica? / me diga como o meu caminho / pode cruzar o teu
se entrelaçar ao teu / e se perder no teu caminho / tuas curvas, teus sinais
me diga mais / onde é seu fim / vem, diz pra mim”

A tarde do sábado da semana seguinte estava só começando quando ele saltou do ônibus e foi até o primeiro orelhão que viu naquela rua desconhecida. Tinha apenas uma ficha e um papel com o telefone da casa dela, que sem acreditar atendeu e riu, e riu muito. Sem avisar, ele havia tomado os dois ônibus que levavam ao nome do bairro dela, a única coisa que ele sabia, e arriscado um ponto qualquer pra descer. Do outro lado da linha ela se esforçava para retomar o fôlego e tentar saber que diabo de rua era aquela de onde ele estava telefonando. Depois de se informar com o primeiro que viu ali por perto, ele pediu que ela fosse rápida, porque a ficha ia cair a qualquer momento. Se cair me liga a cobrar, quase gritou ela. Mas não foi preciso, ele estava a apenas duas quadras do riso incontrolável de sua amada.


A atriz Vera Zimmerman foi a musa inspiradora de Caetano Veloso na música "Vera gata", que ele canta neste vídeo de 1981, acompanhado pela Outra Banda da Terra.

A campainha mal soou e ela surgiu. Selaram o início do namoro com um longo abraço e beijo ali mesmo, no portão, para alegria dos pais dela, que sem que percebessem espiavam pela fresta da cortina da sala, e que viam naquele rapaz que fazia músicas a chance da filha voltar a ser leve como sempre fora. Um sacolejo mais forte do ônibus devolveu o rapaz que fazia músicas àquele final de domingo cinzento. Não havia mais ninguém na condução além dele, do motorista e do cobrador. Mais três paradas e o ônibus chegaria ao seu longínquo ponto final. Ele foi caminhando por calçadas praticamente desertas, como pareciam ficar todas as calçadas ao final dos domingos, naquela hora em que a maioria das pessoas começa a desalegrar o rosto. Ou vai ver que não, talvez ele não estivesse conseguindo enxergar os rostos que passavam por ele, que lavavam carros, que regavam jardins, que atendiam o entregador de pizza no portão, tamanha era a angústia que apertava mais e mais o peito, a cada passo que a casa dela dava na sua direção.

“E como é que fica? / me ensina como os meus cabelos
podem cobrir os teus / se embaraçar aos teus
se perfumar dos teus cabelos / dessas teias, espirais / me ensina mais 
onde é a raiz / vai, então me diz”

(continua)

7 comentários:

dade amorim disse...

Uma história leve e gostosa de ler, primo.
Que bom que a música do Inscrições te leva até lá :)

Beijo pra você.

dade amorim disse...

Eu de novo.
Só uma curiosidade: em que post ficou teu comentário no Inscrições?
O blogspot não diz mais o nome da postagem.
Obrigada
bj

Marcelo Amorim disse...

Oi, Dade, fiz dois comentários, nos seguintes posts: "boneca" e "passado com passas". Vou te avisar lá também, beijo.

Lina Faria disse...

Marcelo,
venho pouco aqui. azar meu.
é muito gostoso teu texto e edição de teus posts.
adoro te ver sempre lá no não lugar.
valeu!

Marcelo Amorim disse...

Lina, percorro seu blog menos do que gostaria, mas sempre que posso é dos meus preferidos, acho tudo lá lindo. Você vir aqui me deixa feliz, ainda mais sabendo que gostou do que leu. Beijo

Borges disse...

"Outras Palavras"...Boa lembrança e ótimo texto. Saudades

Marcelo Amorim disse...

Borges/Francis, agradeço sua sempre bem-vinda visita. Espero que hoje eu consiga postar o final da história, um abraço!