sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Uma canção inacabada - final


Parado em frente ao portão, o que ele mais viu foram pedaços de jornal, folhas secas, folhetos e envelopes empoeirados de correspondência comercial, tudo levado pelo vento para dentro da ampla garagem. Estava claro que não era de hoje que ninguém transitava por alí. Mesmo assim, ele arriscou a campainha duas vezes. Não demorou e uma movimentação qualquer na casa vizinha à direita chamou sua atenção. De fato, uma mulher apareceu entre as grades do outro portão e perguntou se ele era da família. Explicado que não, ela o convidou a entrar. Enquanto servia um café, ela disse que eles tinham viajado para o interior, para a casa de algum parente, iam voltar só na outra semana. Disse também que achou uma judiação, uma moça linda e com a vida toda pela frente acabar desse jeito, eles podiam ficar dez anos fora que não iam conseguir escapar da tristeza, você sabe como foi, não sabe? Não, ele não sabia, e teve que dizer também para a vizinha que estavam sem trocar palavras há quase duas semanas, que ela pediu aquilo porque o ex-namorado vivia indo na casa dela todos os dias, ligando toda hora, etc., etc., e que ele - não o ex, mas o que agora aceitava uma segunda xícara de café - tinha concordado, desde que aquilo não se estendesse muito, desde que eles retomassem logo o que parecia tão perfeito. Quer saber como foi? perguntou a vizinha, ao que ele respondeu que sim, que seria bom mesmo entender de vez aquela história ainda estranha, que ainda parecia não ser verdadeira, mesmo sendo.


Aqui, na cena final do filme "Noel, poeta da Vila", Wilson das Neves canta "Último desejo", de Noel Rosa. Com essa música, feita em parceria com Vadico, Noel se despedia de Ceci, a "dama do cabaré", sua grande paixão. Das mãos de Vadico, Ceci recebeu a letra do samba e a notícia da morte de Noel.

No sábado retrasado, detalhou a vizinha, havia uma festa, o aniversário de uma amiga da Rô, a festa ia ser num bar lá perto daquela faculdade, sabe qual? Então, a amiga dela convidou, mas a Rô não queria ir, andava meio amuada naquela semana, mas o ex-namorado fez plantão aqui na frente da casa dela, veio umas três ou quatro vezes, insistiu que a levaria, pediu, implorou pra que ela deixasse que ele a acompanhasse ao bar, já que eram amigos em comum da aniversariante e ele também tinha sido convidado, mas só iria se ela, a Rô, também fosse, e ele jurava que ia só dar uma carona pra ela, que depois, se ela quisesse, ele poderia também deixá-la em casa na volta, sem nada de mais, ele tinha até prometido pra aniversariante que levaria a Rô na festa, então ia ficar muito chato se ela não aceitasse a carona, só isso, uma carona de um amigo, mais nada.


Há quem considere esta a mais bela canção de todos os tempos. Uma das mais, sem dúvida é. "Everytime you say goodbye", de Cole Porter, com Simply Red.

Será que foi nesse? Não, aqui não tem semáforo. Talvez naquele outro. Acho que não, esse não parece ser um cruzamento muito movimentado. Ou teria sido nesse em que o ônibus parou agora? Peraí, onde fica a tal faculdade perto do bar? Já iniciando a volta para o outro lado da cidade, os postes de luz acesos, os faróis dos carros acesos, a noite de domingo começando a ir para a cama, ele tentava reconstruiu a cena que não queria ver. Num desses cruzamentos, o carro do ex-namorado vai atravessar. Era noite de sábado, quando aumenta o perigo de acidentes e assaltos. Não dá nem para bobear e parar no semáforo vermelho, melhor diminuir a velocidade, olhar rápido para os dois lados e passar. Talvez tenha sido naquele cruzamento ali. O ex-namorado não quis esperar o verde, preferiu acelerar, àquela hora da madrugada já viu. Um clarão e a batida seca e violenta. O carro que vinha na transversal entrou em cheio na porta do lado do passageiro, bem onde estava a Rô. Alguns dias em coma no hospital, a família desesperada, mas ainda acreditando, afinal, ela não tinha nenhum machucado visível, nada. Na aparência, o ex-namorado havia levado a pior, um braço quebrado e vários hematomas. Mas ela teve ferimentos internos graves, até que uma hemorragia irreversível fechou para sempre seus olhos. E foi em um desses cruzamentos.

“E se eu te seguir por ruas / de rastros desiguais / me perder no fim do dia / e anoitecer demais / conta como achar teus olhos / se nem mesmo sei dos meus / se passou da hora / e não dá mais pra retornar”

Nota: a parte que eu sentia que faltava na canção, que incluiu os versos acima, foi escrita meses após o ocorrido, e veio quase sem transpiração. Estranho reconhecer na letra que o que tinha sido feito para cantar uma paixão juvenil e platônica, passou a fazer ainda mais sentido depois.


"Casa vazia", de Flávio Venturini e Márcio Borges, com Flávio Venturini e Paulinho Moska.

4 comentários:

Borges disse...

Adorei vídeo e texto sobre Noel. Repeti, cantei... Visite: bisacodekoisas.blogspot (imagens).Abç

Marcelo Amorim disse...

É muito bonito aquilo, né, Francis? A música, um clássico, mas também a luz, a sequência dramática, a interpretação do Das Neves, a Camila Pitanga, tudo perfeito. Depois visito o link que você sugeriu. Um abração

Vivica disse...

Que fim triste :( Ainda não li as outras partes.
Vou lá!
Passando mais pra dar um oi. Beijão.

Marcelo Amorim disse...

É, Vivi, ficou triste, mas foi assim. De qualquer forma, mesmo nessas histórias sempre tem uma beleza escondida. Beijo pra você.