quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Dragão do Mar e o Almirante Negro

O cearense Francisco José do Nacimento, o "Dragão do Mar".

Fortaleza possui um centro cultural muito bonito, com progamação intensa de teatro, shows, dança, exposições e cinema. O nome do espaço é Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, e é alusivo a Francisco José do Nascimento, cearense nascido em Canoa Quebrada, em 1839. Negro e alfabetizado apenas ao 20 anos de idade, Fracisco era filho de pescador e chegou a líder dos jangadeiros de Fortaleza, que desde aquela época atracavam suas jangadas na enseada do Mucuripe, bem onde estou hospedado. Foi nomeado prático da Capitania dos Portos, quando envolveu-se na luta abolicionista. Era o ano de 1881, e Francisco José liderou um movimento praieiro que fechou o Porto de Fortaleza ao tráfico de escravos, sendo por isso exonerado do seu cargo.


O gaúcho João Cândido, o "Almirante Negro", naquela que talvez seja sua última aparição em foto

Quando em 1884 o Ceará aboliu a escravatura - portanto, 5 anos antes da Lei Áurea - Francisco, que ficou conhecido como "Dragão do Mar", foi reconduzido ao cargo e promovido a Major, sendo até hoje considerado o maior herói popular do abolicionismo no Ceará. Nesse mesmo ano de 1884, ele colocou sua jangada dentro de um navio negreiro e foi com ela até o Rio de Janeiro. O herói cearense precedeu outro, também do mar e também negro, o marinheiro gaúcho radicado no Rio de Janeiro João Cândido. João Cândido era conhecido como "Almirante Negro". Liderou a Revolta das Chibatas, movimento ocorrido em novembro de 1910, quando marinheiros - quase todos negros e comandados por brancos - se opuseram aos castigos corporais que ainda eram aplicados na Marinha. Ao contrário de Francisco José, a luta de João Cândido não terminou nada bem para os revoltosos. João Cândido foi discriminado e perseguido pela Marinha até o final de sua vida, que terminou em 1969, ele com câncer, pobre e esquecido, aos 89 anos de idade. Foi anistiado postumamente apenas em 2008.


O mesmo João Cândido, em uma foto mais próxima da época em que liderou a Revolta da Chibata

Cruzando as histórias do "Dragão do Mar" e do "Almirante Negro", acho que finalmente passei a entender a citação que Aldir Blanc faz no belíssimo samba "O mestre-sala dos mares", composto em parceria com João Bosco. O samba começa exatamente com a frase "Há muito tempo nas águas da Guanabara, o Dragão do Mar reapareceu". Tomando isso como verdadeiro, para Aldir, João Cândido seria uma espécie de "reencarnação" do cearense Francisco José, não no sentido físico, mas na bravura e idealismo. Poeticamente, Aldir pode ter unido esses dois heróis em uma mesma música. Encontrei uma entrevista com o Aldir onde ele não menciona em nenhum momento isso que estou supondo. Mas me parece inteiramente possível essa hipótese. Depois disso, gosto ainda mais deste samba.



Elis Regina canta "O mestre-sala dos mares", de João Bosco e Aldir Blanc. A censura militar não permitiu que a letra mencionasse o termo "Almirante Negro", alegando que a Marinha brasileira nunca teve um almirante "de cor". Aldir, então, mudou a letra para "navegante negro", e assim ficou.

3 comentários:

Unknown disse...

Ma, infelizmente, muita crueldade perseguiu João Cândico e seus companheiros, muitos deles, mortos praticamente por sufocamento em umas solitárias escavadas sob a terra na Ilha das Cobras, ao lado da Ilha Fiscal, na Baía de Guanabara. Fizeram uma espécie de armadilha para alegar que esses marinheiros haviam iniciado uma nova revolta, mesmo depois de anistiados. Uma arapuca para dar cabo deles. Prenderam os caras naqueles calabouços abafados e ainda jogaram cal, com o pretexto de "higienizar" o local. Uma verdadeira carnificina, da qual JC se salvou quase por milagre. Outros, foram colocados involuntariamente em navios que levariam pessoas para trabalhar na Amazônia. Centenas morreram ou durante o camingho e foram jogados ao mar ou, chegando lá, foram largados à merce da sorte. Sem remédios, comida, trabalho, nada. Tristíssima essa história. Mas JC viveu o suficiente para contar. Tks JC!

francis disse...

Desde o início do texto já tinha essência de "O Mestre Sala dos Mares...". E agora me deparo com Elis. Parabéns pela histórica postagem. "...O Dragão do Mar reapareceu..." Visite: eliscantante2.blogspot.com Abç

Marcelo Amorim disse...

Mara, agradeço muito sua bela contribuição ao post. Essa história tem todos os ingredientes para um belo filme.

Francis, tudo se encaixa direitinho mesmo nessa interpretação magistral da Elis. Por coincidência, hoje tem show do João Bosco no Centro Cultural Dragão do Mar, aqui em Fortaleza. Pena eu não poder ir.