segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Teste na Polygram - parte 1


Em 1981 eu completaria 18 anos de idade. O primeiro efeito civil de tal efeméride era poder, ou melhor, ser obrigado a tirar o Título de Eleitor. Uma providência que só não se mostrou totalmente inútil num país que vivia uma ditadura porque as coisas começavam a mudar. No ano seguinte, houve eleições para governador de estado em todo o Brasil. Sendo eleitor em São Paulo, e já assumidamente de esquerda, não lembro se votei no sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ou no senador Franco Montoro, que acabou eleito pelo PMDB. Eleição que, aliás, abriu uma vaga  no Senado Federal que foi preenchida pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso.

O grupo “Sangue Novo” se desfez. Acho que não houve uma razão específica. O fato é que a fase da vida em que estamos prestes a atingir a maioridade é particularmente inconstante. Estávamos terminando o ano de 1980. Com a vitória naquele festival com a música “Hino aos trabalhadores”, da qual me tornei parceiro acidental, e a mais do que evidente vocação que eu e meu irmão demonstrávamos ter para a música desde pequenos, meu pai resolveu separar parte das economias da família – que àquela altura já estavam melhorando – para nos presentear com um violão. Era um Di Giorgio modelo “Estudante nº. 16”, um para os dois. Perfeito para que a gente se animasse com a possibilidade de tocar as músicas que gostávamos de ouvir e cantar. Combinamos um revezamento, um tempo x para que cada um pudesse se dedicar ao instrumento. Logo ficou claro que eu tinha muito mais paciência que meu irmão para aprender os acordes e os ritmos. Minha verdadeira intenção ia além de tocar e cantar os sucessos do rádio. Eu queria compor minhas próprias canções. Mas antes de tudo, eu tinha uma promessa a cumprir. Como relatei anteriormente aqui, quando eu tinha 12 anos de idade eu havia prometido que, assim que pudesse ter um violão, a primeira música que eu ia aprender seria “A banda”, do Chico Buarque. Eu não fazia a menor idéia de como executar a canção, então fiz o que faziam praticamente todos que naquela época queriam tocar violão mas não podiam pagar uma escola de música ou um professor particular: corri para uma banca de revistas e comprei um exemplar da “Violão & Guitarra”, exatamente uma edição especial que trazia algumas das principais músicas do Chico devidamente cifradas. A harmonia estava toda lá, e os acordes eram relativamente simples, o que facilitou muito meu trabalho. Em poucos dias eu já conseguia tocar e cantar “A banda” para quem arriscasse ouvir.


Pra minha sorte, a harmonia da "A banda", que vinha na revista Violão & Guitarra (a imagem acima foi escaneada da edição original, que guardo até hoje), não trazia nenhuma dificuldade, mesmo para quem, como eu, apenas engatinhava no instrumento. Outra música que aprendi de cara foi "Pra não dizer que não falei das flores", do Geraldo Vandré. Esse clássico das canções de protesto dos anos 1960 era presença obrigatória no repertório de qualquer um que tivesse seu violão e gostasse de MPB, já que pode ser cantada e acompanhada com o uso de apenas dois acordes básicos: Am (lá menor) e G (sol maior).

Nessa época, as musas conspiraram a favor da minha iniciação musical. Depois de quase um ano sem evoluir na maçante rotina do Bradesco, fui gentilmente demitido. Eu já tinha 17 anos de idade, ou seja, a época de servir o exército se avizinhava, e empresa nenhuma queria manter em seu quadro um rapaz nessas condições. Eu não fazia ideia de que a legislação trabalhista me protegeria, caso eu entrasse com uma ação para anular a demissão, e na verdade não dei a menor bola para isso, pois não suportava mais aquele trabalho. Tentei arranjar alguma coisa sem registro, cheguei a ser aceito como vendedor numa grande loja de calçados que havia na principal avenida do meu bairro, mas às 8 horas da segunda-feira em que cheguei lá, animado para o meu primeiro dia na minha nova ocupação, a gerente que havia fechado comigo se desculpou dizendo que o dono não queria correr o risco de empregar alguém informalmente. Fiquei frustrado, pois precisava continuar trabalhando, já que terminara o colegial e pretendia entrar na faculdade. Sem recursos para pagar um cursinho eu dificilmente conseguiria passar no vestibular da USP, única opção para continuar estudando gratuitamente. Bem que tentei, mas não passei nem na primeira fase da Fuvest, tamanha a defasagem que eu tinha em relação a quem vinha de escolas particulares, muitos deles com reforço de um cursinho no último ano do colegial. Embora naquela época houvesse bem menos vestibulandos que hoje, havia também poucas faculdades e bem poucos cursos, por isso a concorrência era ainda maior, e entrar numa das principais faculdades de São Paulo, mesmo nas particulares, como PUC e Mackenzie, era um feito que se comemorava muito. Tive, então, a ajuda do meu pai, que garantiu para mim a mensalidade de um curso pré-vestibular. Estudei no Poli, cursinho mantido pela Escola Politécnica, que por ter seu custo subsidiado pela USP era mais acessível que os campeões de aprovação Anglo e Etapa.


A música "Como o mar no cais" é provavelmente a primeira que compus e registrei no papel e na memória. Foi feita às vésperas do Natal de 1980, segundo a data visivel na parte superior deste manuscrito original. A sequência de acordes da harmonia é a mais simplória possível, mas a letra, a meu ver, não é de todo ruim, especialmente para quem mal havia completado 17 anos de idade: "Tens a cor da lua triste / entristece a minha noite / fujo e nada de partida / e em meio corpo é como açoite / em minha vida / fica como o mar no cais". A melodia também é interessante, considerando meu estágio na época. Curiosamente, trata-se de um fado.  

Desempregado, ao invés de estudar eu me trancava no quarto quase o dia todo para tocar violão. Como sempre acontecera até então, eu não tinha um espaço só meu. Dividia com meu irmão e minhas duas irmãs um quarto com dois beliches. Meu irmão estava na Aeronáutica. Ficou por lá três anos, saindo depois que desistiu de dar sequência na carreira de ofical da força aérea. Eu só queria saber de tocar violão e compor. Pegava os acordes que aprendia e saía fazendo músicas. A maioria era de qualidade duvidosa, mas eu não me importava com isso e ia anotando tudo. As melodias eu registrava na memória, já que não tínhamos um gravador portátil em casa. Havia dias em que eu compunha três músicas. Também ia aprendendo várias canções de sucesso, razão pela qual comecei a ser convidado para ir a inúmeras festas e reuniões de amigos e de amigos dos amigos, desde que, claro, eu levasse o violão. Minha timidez ficava escondida atrás de um repertório de MPB que agradava a maioria das garotas e rapazes que me ouviam, mas eu só mostrava minhas próprias canções para poucas pessoas. Uma delas foi uma "amiga" (assim mesmo, entre aspas) do meu irmão, que tinha a pretensão de se tornar artista. Por intermédio de um cantor muito popular da época que ela havia conhecido, o Dudu França, ela conseguiu um teste na Polygram, a principal gravadora de então. O teste consistia em cantar alguma coisa para um diretor musical do selo, num dia qualquer da semana seguinte. Ela me perguntou se eu toparia acompanhá-la no teste tocando violão. Eu respondi que iria. Ela completou dizendo que no teste queria cantar uma música minha, uma das que ela mais gostava, chamada “Entre sol e lua”. Mesmo sem ter exata noção do que aquilo significava ou poderia significar, eu curti muito aquela ideia. A moça era lourinha, bem bonitinha, bem bacaninha e até bem gostosinha, porém, eu bem sabia, ela não cantava era nada. Então, nos pusemos a ensaiar quase todos os dias.

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