sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Mais um festival - parte 1



1981 ainda não terminara, eu ainda não havia atingido a maioridade civil, portanto ainda não estava livre de ser convocado para o exército. Sem conseguir trabalho, eu continuava passando os dias fazendo minhas canções. Na maioria delas eu procurava me aproximar das coisas que ouvia, por isso elas iam do som dos mineiros do Clube da Esquina aos sambas do Chico Buarque, passando por Milton Nascimento, MPB-4, Boca Livre, entre outras referências. Ia compondo, mostrando pros amigos e recebendo elogios. Nessa época, meu amigo Joel se apaixonou por uma garota de um bairro próximo ao nosso. Na verdade, a Vila Nivi era grudada na Vila Gustavo, onde eu morava, que por sua vez era vizinha da Vila Medeiros, endereço do Joel, todos bairros da Zona Norte paulistana, caracterizados como reduto de classe média baixa. Havia alguns núcleos de exceção, famílias com poder aquisitivo maior que a maioria dos que viviam por ali, e esse era o caso da família da Estela. A casa dela era ampla, bonita, e ficava na esquina de uma rua sem saída, onde a maioria das casas era de bom padrão. Durante um certo tempo, a casa da Estela serviu de QG para uma turma de amigos e amigas. Nos reuníamos ali nas noites de sábado e tardes de domingo para ouvir discos de MPB, conversar, beber um pouco, nos divertir sem gastar quase nada. E também para namorar. Bem antes de me apresentar à sua nova paixão e da nossa turma se formar, o Joel me mostrou um poema. Era dedicado à Estela, e narrava com delicadeza o que seria, na visão dele, a passagem da menina para a mulher. O poema chamava “Encanto feminino”, e ele pediu que eu musicasse aquilo.

O garrancho que ainda guardo mostra a data desta parceria com o Joel: julho de 1981.

Eu ainda não tinha feito melodia para a letra de outra pessoa. Estava habituado a pensar nas duas coisas ao mesmo tempo. Muitas vezes, aliás, a letra me apontava o caminho que a melodia devia seguir. Mas encarei o desafio e não demorei nada a mostrar o resultado. Tive que mexer um pouquinho aqui e ali, adequar uma e outra palavra ou frase para que tudo coubesse na métrica da música. Também acrescentei alguma coisa na segunda parte. Ele gostou muito do que ouviu. Era uma bossa-nova com andamento lento. Começava com um vocal bem aberto e melodioso, que procurava sugerir o despertar de uma manhã de sol. Tão marcante ficou essa abertura, que adotei o vocal como uma espécie de refrão, repetindo-o no meio e no final da música. Usei e abusei de acordes com sétima maior, que davam uma sonoridade expansiva muito bonita e adequada ao clima da letra. Para cantar a música, minha voz ia lá em cima, beirando o falsete, e eu já imaginava um apoio de timbres masculinos e femininos em certos momentos da canção, principalmente na abertura.



Todos que ouviram gostaram muito da música, e ela realmente ficou bonita. Decidimos inscrevê-la no festival de MPB de um dos principais colégios da Zona Norte, o Chafic – Centro de Habilitação, Filosofia e Cultura. Era um festival muito concorrido, estava em sua terceira edição, mas sabíamos que a música tinha força, então comecei a conceber o arranjo e a execução do que íríamos apresentar. Os amigos mais próximos fariam o coro e a percussão. Eu cantaria acompanhado do meu inseparável Di Giorgio. Nesse festival havia um outro atrativo: eles dariam um prêmio para o melhor intérprete. Gravei a música apenas com voz e violão em uma fita cassete e fui ao colégio me inscrever. Na bagagem, levei também um samba só meu, que havia feito em segredo para a minha amiga Maria, dois meses depois de compor a melodia da Encanto feminino", chamado “No fundo do fundo” (calma, não é nada disso que você está pensando). A sorte estava lançada. Era esperar pela peneira inicial dos jurados para saber se alguma delas seria classificada para as eliminatórias. Havia mais de duas centenas de canções inscritas, estar entre as classificadas já seria uma vitória. Até que veio a notícia. Foram duas vitórias. As duas músicas tinahm sido classificadas. Aí, deu aquele frio na barriga. Seria a primeira vez que eu cantaria em voz solo diante de uma platéia duas músicas minhas. Mais do que isso, eu não fazia a menor ideia de como defenderia o samba, já que eu e meus amigos mal sabíamos batucar numa caixa de fósforos.



"Daphnis et Chloé", obra composta para balé pelo francês Maurice Ravel, estreou em Paris em 1912. Esta é a segunda e mais popular parte da peça. É uma das músicas mais bonitas que conheço e, arrisco dizer, uma das composições mais inspiradas de todos os tempos. Sei que a intenção do autor não foi essa, mas sempre enxerguei nessa música a mais perfeita narrativa do nascer do sol.

4 comentários:

Lee Swain disse...

Ô Marcelo, manda logo a continuação da história, não enrola! rsrs...

Abs

Marcelo Amorim disse...

Pô, Lee, mas o segredo não tá na história, e sim na enrolação ;-)
Abração procê!

Lee Swain disse...

Marcelo, parabéns pelo teu blog, histórias muito boas. Tomei a liberdade de indicá-lo no meu site.

Marcelo Amorim disse...

Feliz aqui que você tenha curtido minhas histórias e honrado por ser incluído nos seus links, Lee. Agora vou ter que caprichar mais :-)