quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Teste na Polygram - parte final


Nos anos 1970, além das chamadas canções de protesto, a maioria delas censuradas, e dos artistas românticos, muitos egressos da Jovem Guarda, as rádios do país foram invadidas por músicas melosas na língua inglesa. Nada muito surpreendente, numa época em que a moda americana da disco music chegava com tudo, a não ser por um detalhe: essas músicas eram cantadas por artistas brasileiros. Outro detalhe: o público não fazia a menor ideia disso. O início dos anos 80 ainda sofreria com os ecos dessa escrita das músicas internacionais cantadas por brasileilros, mas agora o que fazia sucesso eram as versões dessas músicas. Sem muito critério, muitas vezes aproveitando apenas a sonoridade da palavra ou da frase para adaptar novas letras em português, sucessos americanos eram requentados e despejados a granel, principalmente nas vozes de cantoras que eram presença certa nos principais programas de auditório da TV brasileira.


"Don't let me cry", sucesso de 1973 cantado por Mark Davis, o nosso conhecido Fábio Junior

No dia combinado partimos, eu e a candidata a cantora, para o teste que ela tinha marcado na Polygram. Ensaiamos minha música por alguns dias, e ela tinha chegado ao melhor que podia, o que não significava nada muito convincente. Eu havia reservado a mim o papel de coadjuvante na história. Sinceramente, não me sentia preparado para ir lá “mostrar minha música”. Naquele momento, não passava por minha cabeça investir numa carreira de compositor, até porque tinha muito pouca coisa ainda e nenhum conhecimento musical que me desse alguma segurança. Fazer músicas era para mim apenas uma nova forma de expressão, que eu usava para driblar a timidez atávica. Subi o elevador do prédio em que ficava a poderosa Polygram com meu violão a tiracolo apenas para acompanhar a moça. Não esperava nem ser muito notado, como de fato não fui. A não ser por dois detalhes.


"If you could remember", com Tony Stevens, que na verdade era o cantor Jessé

A sala era grande, o executivo tinha todo o jeitão de um executivo. Gravata escura, camisa branca com os punhos dobrados, uma poltrona confortável, uma mesa enorme, e nós dois sentados em duas cadeiras em frente a ele. Depois de um ligeiro prólogo em que ela avisou que cantaria uma música minha, ele pediu que começássemos. Antes que eu fizesse soar o acorde Lá maior com sétima, ele interrompeu: "Não é samba, não, é? Porque samba é lá na sucursal da gravadora no Rio". Não, não era samba, então tudo bem. Blém! "Não, peraí, primeiro afina o violão, né?" E quem disse que eu conseguia afinar o violão sem meu diapasão por perto? Ele percebeu e pegou o instrumento de mim. Com 5 ou 6 movimentos, parecia tudo em ordem. Pronto, devolvido o violão, vamos lá.


Mauricio Alberto, o Morris Albert, e seu estrondoso sucesso "Feelings". Esta música foi regravada milhares de vezes em duas dezenas de idiomas, inclusive por cantores como Ella Fitzgerald e Jonny Mathis, e vendeu 150 milhões de cópias em 50 países. Em 1988, um tribunal americano considerou as primeiras notas de "Fellings" iguais às de "Pour Toi", canção composta nos anos 50 por Lou Lou Gasté. Morris Albert foi então condenado por plágio, e 3 milhões de dólares arrecadados em direitos autorais nos EUA foram repassados integralmente ao francês.

Ela cantou minha música como tínhamos ensaiado. E como eu previa, nenhum brilho, nada que sugerisse nada, a não ser que não devíamos estar ali. Terminamos. Alguns míseros segundos depois e ele vaticinou, sem meias palavras: "Você não serve pra ser cantora. Se tivesse uma voz mais forte e afinada, poderia gravar versões, já que é uma garota bonita e atraente (ela tinha saído de casa com uma mini-saia que não havia como meu violão manter a afinação), mas não tem voz pra isso". E prosseguiu: "Mas a música eu gostei, você tem mais?" Não, eu comecei a compor agora, respondi quase sumindo na poltrona. "Pois leva jeito", disse ele nos dispensando e agradecendo a visita. Terminava ali o sonho daquela moça de ser cantora. Mas a música era realmente boa. Até hoje sei que ela é boa, embora sua estrutura seja muito simples e não tenha nada que ver com o que faço e ouço atualmente. Voltamos para a Vila Gustavo como viemos, de ônibus e metrô, mas agora quase sem falar um com o outro. Ela realmente ficou triste. Eu também, apesar do elogio que ouvi. Continuamos amigos por algum tempo e ela continuou gostando das músicas que eu fazia. Até que nunca mais nos vimos.


A onda de canções estrangeiras que passaram a predominar nas rádios brasileiras, deu origem a várias músicas que reivindicavam um maior espaço para as produções nacionais. Alcione gravou "Não deixe o samba morrer" em 1975, música que se tornou tema do programa "Alerta Geral", exibido na TV Globo de março de 1979 a maio de 1981. Comandado pela própria Alcione, o programa tinha como mote justamente a defesa da MPB e de seus artistas.

4 comentários:

Rodrigo disse...

Marcelo, vi que seu blog fala muito do mundo do disco. vc conhece o notas musicais? http://blogdomauroferreira.blogspot.com

eu visito sempre, pois lá o tema é disco.

Marcelo Amorim disse...

Oi, Rodrigo. Não conheço ainda o "Notas musicais", vou lá já já dar uma olhada. Agradeço a dica e a visita. Um abraço.

Francis disse...

Essa de Alcione veio do baú da música. Ainda lembro do "Alerta..." Enquanto houver "Não deixe o samba morrer", ela não morrerá. Braços.

Marcelo Amorim disse...

É, Francis, esse vídeo foi um achado mesmo. Santo youtube! A marrom mudou muito, mas continua cantando bem, apesar de, na minha opinião, ter cometido umas escorregadelas no repertório, ao longo dos anos. Um abraço.