terça-feira, 13 de outubro de 2009

Se for cantar, não beba



"Rabo-de-galo" é a tradução literal de “cocktail”, termo em inglês há tempos aportuguesado para "coquetel", e que define uma mistura de bebidas que geralmente envolve uma de sabor mais seco e outra mais adocicada. Aprendi com meu pai a gostar de um bom rabo-de-galo, esse típico drinque dos bares de periferia que leva cachaça e vermute. Na versão paulistana, ao invés de vermute se usa Cynar, uma aguardente composta, feita à base de alcachofra. Pegue uma dose de uma cachaça de qualidade e misture a ela uma mesma parte de Cynar. Se quiser, acrescente uma pedra de gelo. Simples assim. Mas pare na terceira dose, no máximo. Ou você se arrependerá amargamente.

Semanas antes do festival que ganhamos com a música “Hino aos trabalhadores”, nos inscrevemos para participar de um concurso musical diferente. Diante da profusão de festivais de colégio, em que os candidatos inscreviam músicas próprias e inéditas, aquele era uma espécie de karaokê. Os inscritos deveriam defender músicas conhecidas, desde que fossem músicas brasileiras.  Landinho, nosso violonista e compositor oficial, portanto, o líder natural do “Sangue Novo”, estudava no colégio promotor do festival. Depois de algumas reuniões em que a música dos mineiros do "Clube da Esquina" predominaram, decidimos nos inscrever naquele festival para interpretar “Cio da terra”, a belíssima canção composta por dois gênios da raça: Milton Nascimento e Chico Buarque. Feita nos moldes das chamadas “músicas de trabalho”, a melodia sendo repetida em todos os versos, “Cio da terra” fez parte de um compacto-simples lançado por ocasião de um show comemorativo ao Dia do Trabalho, em 1977. Estávamos confiantes da nossa escolha e tínhamos certeza de que entraríamos no festival para ganhar. Tal condição foi reforçada na audição eliminatória. Não havia público, todos cantaram reservadamente para os jurados, uma semana antes da final. Fomos classificados com louvor, tidos quase como imbatíveis pela organização do negócio. No sábado seguinte, entretanto, tudo ia mudar. Do vinho para a água. Ou pior que isso.



No ano anterior, 1979, o Festival de MPB da TV Tupi havia revelado um compositor e cantor bastante original: Oswaldo Montenegro. Seu vozeirão grave de bons recursos, suas interpretações dramáticas, além de composições personalíssimas, fizeram com que o brasiliense tivesse uma carreira meteórica, tanto no seu surgimento quanto na sua saída do circuito. Eu e meu irmão gostávamos muito de cantar as músicas do cara. E mandávamos bem, embora elas não fossem exatamente fáceis. Foi principalmente por esse motivo que conseguimos assumir como vocalistas do “Sangue Novo”.


Seria a primeira vez que eu, o Joel e o Dario, subiríamos em um palco diante de um público. Estávamos quase apavorados. Imagine se a gente acordasse rouco no sábado que vem. Nem pensar, isso não poderia acontecer de jeito nenhum. Então, embora incensados na eliminatória, saímos dali e fomos direto para uma farmácia. Pedimos ao atendente que nos desse uma pastilha contra a rouquidão. Aproveitando-se o fato de estar atendendo um bando de garotos que não tinham a menor noção do que estavam fazendo, o atendente nos vendeu a pastilha mais cara que tinha, um antibiótico. Consumimos aquelas pastilhas religiosamente, duas por dia, pela semana toda. Bingo! No sábado acordamos roucos de dar dó, os três. Mas o pior não foi isso. O pior foi algum de nós ter tido a idéia de pararmos num boteco antes de chegar no colégio.



Tirando as composições do Landinho e do Alexandre, nosso repertório era quase todo composto pelas músicas dos mineiros do "Clube da Esquina". Eles misturavam a sonoridade das festas religiosas de Minas Gerais com timbres interioranos e, para arrematar, um belo toque de Beatles. Eram todos amigos de frequentar a casa uns dos outros, e tinham no já consagrado Milton Nascimento uma espécie de guia, de mentor. Mas quem realmente lançou luz sobre o trabalho deles foi Elis Regina, ao gravar as músicas daquela turma, especialmente dos irmãos Borges, Márcio e Lô. Como disse uma vez Elis, eles faziam "músicas solares".

Meio da tarde de um sábado, meia dúzia de guris carregando pelas ruas vários instrumentos musicais e um saco de ansiedade. E se a gente tomasse alguma coisa pra relaxar? Claro, só uma, pra dar uma acalmada, não vai fazer mal a ninguém. Encostamos o umbigo num pé-sujo qualquer. Não sei quantos rabos-de-galo bebemos e bebi. O fato é que saímos de lá balão. Chegamos à final do festival trançando as pernas. Não deu outra, quando anunciaram os favoritos da noite, subimos ao palco chamando Jesus de Genésio. Foi um tremendo fiasco. Eu me sentia o próprio Mick Jagger. Peguei o microfone e apresentei um a um do grupo. Depois, falei uma bobagem qualquer contra a ditadura e começamos nossa apresentação. Depois de uma introdução acústica, o Alexandre soltava o bandolim e pegava o baixo elétrico. Assim que ele começou a tocar o baixo, cismei de caminhar no palco e pum!, tropecei no cabo, desligando o instrumento e interrompendo nossa apresentação. Recomeçamos em seguida, mas essa presepada e a desafinação dos três vocalistas, que nunca tinham cantado num microfone de verdade, e por isso achavam que tinham que gritar para serem ouvidos, foram mais do que suficiente para justificar as vaias. Nossa amiga Maria estava lá na platéia, compondo nossa pequena e envergonhada torcida, e tinha levado uma amiga de nome Fátima, uma garota interessante e meio bicho-grilo, de longos cabelos dourados. Depois do fiasco, a Fátima veio me dizer que eu tinha luz própria. Pronto. Foi o suficiente pra eu me reanimar e sugerir que voltássemos ao pé-sujo para terminar o que tínhamos começado. E lá fomos nós, rindo um da cara do outro.




8 comentários:

Vivica disse...

HAHAHAAHAH Morri de rir com essa história. Por curiosidade, quantos anos tu tinha nesse espisódio?
Se for menos de 14 não responde, senão conto pra tua mãe! rsrsrsrs

Marcelo Amorim disse...

Era "de menor", Vivi...rs... mas não tinha menos de 14, não, pode ficar tranquila. Era 16, no mínimo ;-)

Francis disse...

Tarde boa... Ah, rabo de galo tem aqui! Pode ser tambem conhaque: era a b(p)edida em botequins de festa de casamento, no interior. Va no Sol e leia Botija. Abc.

Marcelo Amorim disse...

Acho que tem rabo-de-galo no país todo, Francis, o que muda talvez seja a bebida misturada na catcha. Li seu post lá, belíssimo. Depois comento in loco. Um abraço

Francis disse...

Mas vc viu seu nome na Botija? Também chamam de "rabo de galo" as pequenas brigas. Os galos, no trapézio da madrugada, celebram a vida em terceira dimensão (post. Abç)

Marcelo Amorim disse...

Vi não, Francis. Será que tô doido? Li, reli e nada de "meu nome". Acho que você vai ter que desenhar pra eu entender :-)

Francis disse...

Está no início do texto: dedicatória (risos)

Francis disse...

Comecei a conhecer Milton nesta canção: "Cio da Terra", bela lembrança. Abç