quarta-feira, 8 de julho de 2009

Como canções de ninar

O formato dos programas de calouros, que hoje ganhou ares de showbusiness por meio do American Idol e de suas franquias, foi explorado por décadas nos programas de TV comandados por Silvio Santos, Chacrinha, Raul Gil e Bolinha. Porém, a gênese desse tipo de competição está no rádio. Ary Barroso, um dos nomes mais importantes da nossa música, que exercia múltiplas atividades artísticas, lançou o programa de rádio 'Calouros em Desfile' em 1937, que depois foi levado para a TV Tupi. Ary exigia que os candidatos cantassem somente música brasileira e que anunciassem corretamente o nome dos compositores. Na TV Tupi, ele instituiu o gongo, tocado para desclassificar os piores candidatos. Mas o gongo silenciou diante de Ângela Maria e Lúcio Alves, dois dos muitos grandes intérpretes que ali se lançaram. (fonte: cifrantiga.blogspot.com)


Naquele domingo, estávamos na casa dos meus avós maternos. Provavelmente para um almoço em família. Provavelmente para uma macarronada. Minha avó Rosa, com seu sotaque português, e meu avô José, com seu jeitão típico de um paulista do interior, tinham sua vitrola e seus discos. Eram títulos populares, de cantores e cantoras vindos da chamada “Era do Rádio”. Vários LPs da Ângela Maria, alguns do Cauby Peixoto e Francisco Alves, além de Francisco Petrônio e Francisco José, um português nascido em Évora, que gravou quase todos os fados clássicos. Mas tinham também algo de um outro Francisco, o Buarque de Hollanda, junto de coisas que descobri fuçando os compactos que estavam por ali ao lado da vitrola, que disputava heroicamente a atenção das pessoas com o onipresente Programa Silvio Santos e seu “Show de Calouros”, transmitido pela extinta TV Tupi, o “canal 4”.

A "pimentinha" Elis Regina também chegou a ser chamada de "Eliscóptero", pela forma como girava os braços ao lado do corpo nos momentos mais empolgantes das músicas que cantava. Quem ouve suas primeiras gravações identifica facilmente em quem Elis se espelhou no início da carreira: na "sapoti" Ângela Maria. "Menina, você tem a voz doce e a cor do sapoti", disse Getúlio Vargas para Ângela, inaugurando o apelido pelo qual a cantora seria conhecida para sempre.

Não sei dizer quem me guiou na escolha dos compactos que acabei ouvindo, porque eu não conhecia nada daquilo. Ou melhor, achava que não conhecia. Assim que colocaram para rodar o primeiro daqueles disquinhos e comecei a ouvir aquela mulher cantando “ê, tem jangada no mar... êi êi êi, hoje tem arrastão...” eu tive a nítida sensação de que já tinha ouvido aquilo antes. Depois, uma outra faixa na agulha e a voz de um rapaz começava a cantar “estava à toa na vida, o meu amor me chamou...”. Aquilo também bateu em mim com a mesma estranheza de quem lembra de algo que não sabe exatamente se conhece. “Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar...” dizia o poderoso verso saído de um outro compacto, e do mesmo modo aquilo me soou familiar, só não sabia o por quê.





Jair Rodrigues interpreta “Disparada”, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, no Festival da Record de 1966. Um dos momentos mais belos e emocionantes da música brasileira, em todos os tempos.

Os mais velhos à minha volta praticamente disputaram a primazia de me explicar o que estava acontecendo. Naquele domingo de não sei que ano, talvez 1971, talvez 1972, eu estava sendo apresentado a músicas que tinham participado dos festivais promovidos pelas TVs Excelsior e Record na década anterior. As transmissões das eliminatórias e das finais dos festivais davam picos de audiência. A qualidade das músicas e dos artistas que se apresentavam, o clima de competição, tudo contribuía para que esses eventos tivessem um grande sucesso. Certamente, a Telefunken lá de casa também ficava sintonizada nos festivais. Ficara claro, então, que embora eu não me lembrasse de ter estado diante da TV naqueles momentos históricos, eu que contava apenas 2, 3, 4 anos de idade quando os shows aconteceram, de alguma forma aquilo tudo havia ficado no meu subconsciente. Assim, como quem reconhece repentinamente uma canção de ninar que ouviu na primeira infância, as músicas dos grandes festivais de MPB estavam adormecidas na minha memória. Naquele dia, meio que por acaso, eu me reencontrava com a força daquelas canções, e desta vez de forma consciente. Canções que, aliás, iriam a conduzir e a referenciar grande parte do que passei a gostar e a querer fazer na música.

3 comentários:

francis disse...

Jair diz que com essa música a crítica entendeu que ele não era somente um sambista, mas entrara para o rol dos grandes cantores da MPB: isso perdura até hoje. É prazeroso ouvir o vezeirão ritmado deste cantor brasileiríssimo. Abraço meu querido amigo de quem não me canso de indicar e comentar seu valor musical. E vamos todos parabenizá-lo pelos seus 50 anos de carreira. Marcelo, inclua sempre em suas postagens essas boas lembranças. Jair é o que nos resta daquela geração que cantava de verdade. Abç.

francis disse...

É, a presença de Elis é muito forte em seu país. O mundo também a relembra: "É manhã, ór(fã) manhã: na rua central e na periferia do mundo inteiro, na melancolia desse janeiro...

Marcelo Amorim disse...

Pode deixar, Francis, que sempre que eu tiver boas lembranças e boas referências da MPB pra postar aqui, vou fazer isso. Nos próximos posts trarei algo do pessoal do Clube da Esquina, mas terá mais. Um abraço.