terça-feira, 21 de julho de 2009

Febre, doces e discos

Araraquara, interior de São Paulo (na foto, cena de 1971), a "Morada do Sol" (na tradução do tupi-guarani) se orgulhava do seu sistema de transporte coletivo limpo e silencioso, à época formado apenas por troleibus elétricos. Quem chega a Araraquara já sente o aroma cítrico no ar, produto das chaminés de suas poderosas indústrias de suco de laranja. Pelo mesmo motivo, cheguei a ver cristais de açúcar no pára-brisa dos carros estacionados nas ruas de lá. Lembranças literalmente doces de uma cidade muito querida por mim.

Como dizia aquele famoso jingle do finado banco Bamerindus, o tempo passa, o tempo voa. A Jovem Guarda já havia ficado para trás, o homem já tinha pisado na lua, o Brasil emplacado o tri-campeonato no futebol, os Beatles se separado (aliás, só bem mais tarde tomei consciência do que foram os Beatles), os grandes festivais da Record já eram história. E eu, nesse meio tempo? Continuava ouvindo rádio e discos, aprendendo a cantar tudo que fosse música que ouvia. Continuava magro feito um palito, apesar do tratamento que havia feito anos antes para ganhar peso e apetite. Continuava também perdendo a tampa do dedão ao chutar bola descalço na rua e no quintal. E pulando de casa em casa, a cada intervalo de dois anos, em média, a cada vez que vencia o contrato de aluguel e o reajuste inviabilizava o orçamento. Mudar de casa tantas vezes nunca se constituiu num problema para mim. Não enquanto era uma criança. Na verdade, isso abria novas e interessantíssimas possibilidades. Gostava muito de visitar as casas candidatas a nosso novo endereço, depois conhecer os novos vizinhos, a nova rua e suas redondezas, arranjar novos amigos pra jogar bola e aprender um novo caminho pra ir a pé à escola. Uma das coisas que não mudavam nessa época eram as temporadas de férias em Araraquara, no interior de São Paulo, na casa dos tios Maria e Nelson.



Além do rádio e dos programas musicais, outra forma de contato com a música era por meio das trilhas das novelas, que nada mais eram do que coletâneas de sucessos nacionais e internacionais. Algumas dessas trilhas eram tão caprichadas que são hoje consideradas verdadeiros clássicos do gênero. Da novela Anjo Mau, levada ao ar na verão original em 1976, na TV Globo, foram lançados dois LPs magistrais, tanto o de músicas internacionais quanto o de nacionais, que contava com essa balada de um ainda muito jovem Guilherme Arantes, "Meu mundo e nada mais" (no vídeo, um trecho dela). No início de sua carreira, Guilherme Arantes foi trabalhado pela gravadora para ser uma espécie de "Elton John brasileiro". O astro britânico era, naquele momento, o músico pop que mais vendia discos no mundo.

Tenho que declarar aqui que minha tia Maria me mimava que era uma delícia. Como ela arranjava tempo e disposição pra isso, com seis filhos a tiracolo, é para mim até hoje um mistério. Sim, seis filhos, quatro primas e dois primos. Não lembro com que freqüência isso acontecia, mas eu e meu irmão Dario, quase dois anos mais velho que eu, passávamos alguns dias por ano ocupando um dos beliches do segundo quarto da casa da minha tia. Adorávamos, claro. Na pacata Araraquara daquele início da década de 1970, dava pra jogar bola em rua por onde passava ônibus. Ônibus, não, troleibus movidos a eletricidade. Uma das coisas que me encantavam em Araraquara, eu que morava numa São Paulo que já crescia desordenadamente, era ver os funcionários da prefeitura recolhendo a sujeira das ruas arborizadas com uma vassourinha feita de um punhado de gravetos secos amarrados. Eles juntavam o lixo das calçadas e o depositavam num latão sobre uma carroça, conduzida por um sonolento cavalo, que parecia acompanhar o ritmo de vida daquela cidade.

Depois do meu avô José, meu tio Nelson é um dos sujeitos mais caboclos que conheci. Caboclo no sentido de gostar das coisas do campo, do jeitão de ser, da cachaça, do churrasco, da pescaria, do chapéu, da música caipira tocando sempre, no rádio e no toca-fitas. Foi por ele que conheci as primeiras duplas caipiras, a maioria surgida no interior paulista, como a mais clássica de todas, formada pelos irmãos Tonico e Tinoco.

Eis que, numa dessas temporadas de férias, fiquei doente de cair de cama. Não lembro o que foi nem por que foi, mas lembro que isso durou por uns dias, eu com febre alta. Toda febre parecia querer fazer meu corpo levitar, tanto que o teto girava quando a temperatura subia. Mas onde o bicho pegava mesmo era na minha garganta. Sou de uma geração em que todos os males do mundo eram debitados nas amígdalas, uma espécie de membrana que compõe o sistema de defesa da garganta. Pois boa parte da culpa por minha falta de apetite crônica na infância recaiu sobre elas. Então, zapt! Por volta dos 7 anos de idade passei por uma cirurgia de extração das amígdalas. Desde então, qualquer infecção que pego na garganta instala-se direto na laringe. Haja spray de própolis para aliviar o problema. Naquele tempo, sem esse santo protetor das horas inflamadas, só mesmo cama, antibiótico e paciência. Mas na casa da minha tia Maria, sabedora do quanto eu gostava música, passei três dias deitado no sofá da sala decorando e redecorando discos dos inevitáveis Moacyr Franco e Roberto Carlos, além de um cantor espanhol que começava a fazer sucesso por aqui: Julio Iglesias.


Essa me permito arriscar não consultar o Google. Pelo que sei, o cantor espanhol Julio Iglesias era goleiro profissional, mas um acidente de carro afetou um dos seus joelhos e o impediu de seguir carreira no futebol. Então, arriscou-se pela música. E deu no que deu, virou um ícone da música romântica no mundo todo. "Manuela" foi seu primeiro single a entrar nas paradas de sucesso brasileiras.

Araraquara, para mim, significava coisas simples e muito boas. Jogar futebol na rua com os primos Nilson e Nelsinho (este, aliás, um craque), tomar banho de rio, subir em árvore, comer os doces que a prima Vilma fazia, infernizar as primas Sandra, "Cia" e "Vita", ouvir os discos da tia Maria e as modas de viola do tio Nelson. Porém, àquela altura, com 12 para 13 anos de idade, eu começava já a querer fazer outra coisa com a música. Em silêncio, eu dizia pra mim mesmo que queria tocar violão. Também em silêncio, dizia que assim que eu aprendesse a tocar violão, a primeira música que eu ia tocar seria uma daquelas que ouvi tempos atrás na casa dos meus avós, e que não me saiu mais da cabeça. A primeira música que eu ia tocar seria “A Banda”. As outras? As outras eu ia tentar fazer.

4 comentários:

Vivica disse...

HAHAAHAHAH Eu também tive essa tal de falat de apetite crônica! Difícil de acreditar, eu sei!

E o Julio Iglesias goleiro? Tem uns jogadores no Inter que podiam ir pra música também...rs! Mas se bem que assim como no segundo tempo, eles morreriam na segunda estrofe! HAHAHA

Beijos

Marcelo Amorim disse...

Ê, Vivi, só tu mesmo :-) Quer dizer que você também teve falta de apetite na infância? Quem diria que depois ia dar nessa carnívora, hein...rs. beijo

GUERRILHA DCI disse...

Salve Marcelo!!!

Sou cidadão de Aracoara (Araraquara a Morada do Sol), nesses dias passados estava debatendo umas idéias com um amigo... Estamos atrás de fotos antigas de nossa cidade. A foto q vc postou é muito louca, valeu!

Marcelo Amorim disse...

ôpa, salve, salve, meu caro araraquarense! feliz aqui que eu tenha te ajudado, mesmo sem querer. Boa sorte no projeto aí. Um abração